Vejo vinco em meu rosto: não estava aqui
(é tema recorrente da vida: sua passagem)
Apalpo as costelas, que antes não tocava
e das escápulas brotaram asas.

Voei, portanto, não tão perto de ícaro,
não distante de dédalus,
com a esfíngica cabeça em apolo
e a terrena cauda em dioniso-baco.

De cima, nas horas fartas de janeiro,
contemplava o mar de impossibilidades
e gotejavam dos olhos as dores procuradas

Dizem:
Venceste a tudo e a todos,
venceste ti mesma
e a paga é:
a exaustão radiante do trabalho quase feito
o desespero calculado do porvir
e esse vinco aí em teu rosto.

E se tudo se resume a essa marca
que revela os quase trinta anos atravessados
que apareça o vinco, a marca, a ruga, nesga,
que retorça a cara, afete, desfira, fira,
que mude, transforme, escorra, reluza

que a mulher se apresente assim:
eu.
Penso em cabelos cortados
e colos repartidos
e vejo olhos por todas as partes.
Doces, ternos, brilhosos.
Vigilantes, honrosos.

Penso em estátuas de mármore gelatinoso,
imensas, aterrisadas, e vejo-as a toda hora,
a hora toda.
E nuas, retorcidas: engrenagens.
Verdes, azuis, não enxergo: vejo.
Toma conta da vida, move.

Penso em arbóreas ruas
com guardiãs-salamandras colossais
coloridas, luzentes, fotonízeas.
em casa unas, com flores penduricalhadas
umas e outra: é dia de ramos
e o povo anda a volta.

Vejo lemosins e micântios.
E trevores e locorias.
E pândicas e fidunídias,
e dinótares e coloríneas:
todas flores que sonhei.

São tuas e estão na porta das casas.
Nas ruas, nas horas, nas engrenagens.
Nas estátuas, labaredas, colazores.

Vem, tem um pouco ainda disso
que não hei de mostrar a outro
que não tu.
Tens para mim o gosto dos cafés compartihados
Das manhãs preguiçosas de julho
e das agitadas e cruas de setembro.
tens o gosto da comida devota
do amor compartilhado com os bichos
da fala inútil, besta e agradável.

Tens o som dos despertadores quebrados
Ecoando naquelas manhãs
do teclado martelado de madrugada
do furto a geladeira, sonâmbula,
do breque do carro no portão
da felicidade canina com tua presença.

Tens o cheiro exato daquilo que almejo:
perscrutar teus cheiros, achar o local
onde nasce meu desejo.

Tens a temperatura ideal:
quente no inverno
refrescante no verão.
Tépida na meia estação.

Tens o encaixe corpóreo
Tens as palavras certas
Tens as atitudes corretas,
planejadas, esperadas.

Tens tudo o que precisava eu.
Mas tens também ausência.

E por saber-te tua,
e recordar teus pertences,
torna-te presente.
Fazemos assim: deixemos que passem as horas
na balela dos dias
enquanto o amor escorre pelos lastros.

Sinto falta de tudo, amor: de nós, dos gatos
das patas, da minúscula cozinha, sopas, pão.
Do cheiro de ração, do edredon com pelos,
do cheiro de café fraco e doce pela manhã,
do bom dia mau humorado,
do cheiro do teu primeiro cigarro.

Cachorros expressam a revolta pela minha ausência:
mordem-se, contrário da pacatice dos dias de sol,
quando eu tinha tempo de deitar-me com eles
e contigo.

Tempo: dizem relativo, e eu digo impositivo.
Eu perdi quase tudo que me importa:
não vi os meninos abrirem os olhos,
nem seus primeiros passos.
Não estava lá para rir do bichano no cesto.
Perdi a hora do café.
O cachorrinho já é um guardião.

O tempo das pequenas coisas passa,
e o das grandes, do trabalho, da adultice, fica.

E se aos poucos a casa se esquecer de mim, e eu não mais puder surpreendê-la ao amanhecer?
E se os gatos não mais me atenderem, e eu ficar a chamá-los, tola?
E os cachorros me estranharem, ao invés de brigarem por mim?
E as panelas mudarem de seu indefectível lugar e eu não mais me mexer na área que é minha da casa?
E se tu também já não te recordares de quem sou?
E se eu perder um pouco de mim nisso tudo?

Adultice!


Menineza.
Hordas barbareas saquearam meu corpo
dado a imperfeição
E usaram.
Como líder, uma parte escura de mim
incitada pela glória da inconsequência.
Ferimento a bala não - colher, sem fio,
entra na alma a estacadas.

Não há água que lave o que escorria de mim.
Veneno, lascívia, luxúria, muito próxima a dor
estava a minha cabeça de leão.

Olho meditativa do canto escuro do ser.
Muita luz, muita sombra.
Não há holofotes, nem feixes de luz
nem luz.
Quem em perfeito estado sucumbiria?
qual imperfeito estado resistiria?

Merecia facas nos teus olhos e encontro flor.
Flor flor flor, se ainda não doesse tanto
ser esfinge, dura, cruel, amorfa.
Retorno a ti como quem retorna das batalhas.
Mil anos se passaram numa noite.

Crueleza: deixaste-me sozinha entre adagas
Facas, espadas, ferros, lanças.
Fui-me também embora de mim e
enfim era só ausência.
Um corpo movendo-se entre esferas.

De um lado dor
De outro possibilidades perdidas
negadas
Acima mirando tudo,
da esfera etílica
serpente esfinge cobra e duras garras

Patas
Lanças
Algumas dores.
Cobro-me perfeita
e a distância é imensa entre eu e eu.
Nunca entre eu e tu.

Saiba, tenho também só alguns anos mais
o resto é de menos.

Perdoa-me amor.
Passou.