os que ouvirem este chamado, por favor tragam longas enxadas com que me desterrem e, com gentileza, achem meus sonhos. Há muita terra neles. E pó. E barros, pedaços de concreto das casas caídas, túneis despedaçados de tempo, deuses mortos, avareza, animais de estimação atropelados e envenenados. Há mortos. Há mofo e folhas secas. Há invernos, e por aqui nunca amanhece. Há um tanto de egoísmo, há fingimentos e há luxúria rondando as orelhas. Há neblina e pouca luz. Há bruma. Há sombra. Há vermes atentos prontos para devorar o que vier pela frente. Há pedaços de gente.
Os que vierem, por favor tragam pás, garfos, tridentes, e removam de mim o que julgo ser eu mesma. Removam o que eu julgo. Re-movam-me daqui. Venham num motim de amor e luz e alegria e tragam tochas. Por favor, tragam tochas. E lanternas. E algo com que atear fogo nas minhas ventas. Façam tudo sem que me dêem tempo de pensar: nesse átimo novamente preparo um engodo. Minha mente pérfida não se acostuma a alegria. Tragam também espadas para que cortemos as cabeças e os vícios. Se os meus não rolarem, por favor chutem-os pelas ladeiras íngremes do meu caminhar. Sem dó: eles me servem de muito pouco agora. Tragam grandes caixas, para que se removam as facas da minha afiada língua-pedra, do meu sarcasmo arguto, da minha mente-máquina-de-dolorir-machucar. Tragam pentes para pentear minhas lembranças de um tempo em que tudo era mais leve mais fácil e mais doce.
Mandem os vagalumes na frente, quem sabe o seu tilintar de luz me distraia e eu não me afugente. Mandem os cachorros e os gatos: eles sempre me acalmam. Peçam que eles se deitem tranqüilos aos meus pés e que seu ronronar me encante, apazígüe, refrigere minha alma borbulhenta.
Tragam terra nova para preencher o buraco deixado pelas ruínas. Que as beiradas de mim, as brechas de caos, os olhares perdidos, a dúvida, o receio e o horror possam servir pelo menos de adubo das flores d´alma. Tragam folhagens vistosas, que espantem os transeuntes perdidos. Tragam abetos para quando for novamente natal, para que eu de novo desperte por entre os papéis rasgados as pressas e que eu contemple os presentes do meu pai.
Tragam as orquídeas, e que elas possam novamente se enrolar em meus braços-tronco. Tragam todas as flores e as plumas e os brilhos que couberem nas mãos. Quando se fartarem, espalhem por aí para que possam também colorir o dia.
Venham todos que puderem, e chamem também os caçadores de borboletas: elas fugiram de mim, com razão, quando sentiram o primeiro lamber das labaredas do meu ódio de mim. Chamem os encantadores de animais, os músicos, os pródigos, os belos e inúteis, os felizes, os hedonistas, os artistas. Chamem o minotauro de creta, chamem o próprio labirinto e que ele suplante minhas idas e vindas. Que ao andar por ele eu me encontre.
Quando todos vierem, me convidem para festa.
Se eu não aceitar, me obriguem.
Me dêem do bom vinho, me façam cantar e dançar. Me relembrem que sou alegre, que já fui a própria alegria, que sou caçador e borboleta, artista e bacante, senhora de mim, das minhas horas, entregues ao deleite de estar contemplando o mistério.
O diabo veste Prada, é verdade. E usa channel no. 5. Tem olhos lindos, o diabo,uma boca perfeita e um nariz mais lapidado que nariz de santo. Tem cheiro certo,o diabo e te come muito bem. O diabo é arrebatador, o diabo não tenta, não, ele consegue. Ou ainda: o diabo é feio, é horroroso, todo mundo vê, mas faz você achar que não é tão feio quanto pintam, só para você pagar mico.
O diabo se parece com você.
Parece que chega do nada, mas já tava te rondando faz tempo. Ele vem e te olha tão fundo que você não vê problema em mostrar sua alma. E quando ele vê a sua alma ali, na batalha pela luz, ele, o diabo, se apaixona. O diabo entrega a vida a você, e você aceita sem perceber que é você que tá entregando a alma pra ele. O coitado do diabo, se apaixona e sabe que vai perder, por que ele também trabalha pro cara lá, sabe? O diabo é Lúcifer, o portador da luz. O diabo, apaixonado, faz tudo por você. Larga tudo: filho avó marido amante e foge com você pro nordeste, vai viver de brisa. Diz que é por você. E você se apaixona por ele. Você faz juras de amor ao diabo e quando parece que não tem mais volta, quando você já começou a envolver a herança da família, deixou também seus amigos, seus livros, suas riquezas, sua vergonha, o diabo começa a endiabrar-se. Ele te testa, te mede, te mostra um espelho e você se vê inteira, a sua parte sombra, feia, feia que nem com pintura resolve. O diabo vira tudo do avesso, se revira. E pra sair dessa que você se meteu, você que se vire.
O despenhadeiro donde me precipitei:
Lá está meu corpo estilhaçado no chão
Ao lado, quieto e fracamente pulsante
meu despedaçado coração.
Daqui pode haver bruma
névoa cortina de ilusão:
será que posso ter me enganado tanto
que o próximo passo também é em vão?
Se eu amo ou não
Se é desejo
Se é só paixão
Se é amor o que
num arroubo de emoção
Deixa que me ataque o meu (já tão frágil) coração
Com ponta pedra faca açoite adaga mão
da palavra jogada num caos hormonal
de inação
de impossibilitação
de ponta machado
de nãos.
Olha em volta: respira
mira seu corpo no chão
levanta do turbilhão caótico
Me dá a mão?
Amor!
não me entrega ao precipício
não me tira a razão
Ajuda-me a sair do caos-coração-estilhaço
Não me empurra de volta ao chão!
O corpo continua
derramado no turbilhão
como me levanto
de tamanha decepção?
(comigo com o mundo não)
Fico aqui
em busca da minha mão
que retira da névoa bruma véu da ilusão
e mostre enfim os dias de sim
e que eu contemple serena os dias de não.
(em 18/06 revisto por fora da névoa)