aqui quase longe

(à sombra das galáxias cintilantes)

ana roxo

para o Nelson e a Lena, meus pais
que, dentre outras coisas,
me mostraram o cosmos.

Cena 1
(duas crianças olhando o céu. Muito tempo em cada imagem, em cada fala)
Uma – É bonito.
(tempo)
Outra – É.
(tempo)
Uma – Do que são feitas?
(tempo)
Outra – De luz.
(tempo)
Uma (olha pra outra, em dúvida) – Tipo abajur?
Outra – É. (duvida. tempo) Deve ser. Minha mãe que disse.
Uma – Quem acende?
Outra (duvida) - Deus. Acho.
Uma – Todas ao mesmo tempo?
Outra- É.
(tempo. Olham. Uma olha pra Outra.)

B.O.
Aos poucos, vão se acendendo pequenos mini pontos de luz (leds) no palco, formando um céu. As luzes estão no figurino, no corpo dos atores, vão se acendendo paradas, mas, depois de todas acesas, começam a se mexer, numa coreografia espiralada e lenta, como as galáxias. Vai aumentando a velocidade. Vai entrando devagar uma marchinha de carnaval. A luz vai acendendo cobrindo os pequenos leds de luz, que agora parecem apenas brilho das fantasias carnavalescas. A coreografia desemboca num trenzinho de carnaval. A marchinha ganha a cena.

Cena 2
(destaca-se da multidão estelar do trenzinho e começa a falar com a platéia. A cena começa estranha, parecendo uma radialista do anos 40 afetada, mas com o tempo vai ganhando densidade e atemporalidade)

MULHER - Era 1940 e eu e algumas amigas, por diversão, fomos ao jóquei, jogar nos cavalos e, por pura sorte, protegida por alguma inocência, ganhamos dinheiro! Não muito, é claro, por que a sorte não era tanta, nem a inocência... Mas foi o suficiente para passarmos o carnaval no Rio de Janeiro! (musica aumenta)
No último dia, andamos e andamos atrás de uma última e inesquecível memória de carnaval. Por fim, encontramos um baile de máscaras, que prometia ser marcante. Eu estava elegantemente trajada de espanhola, com castanholas em punho e olé na ponta da língua! Nos divertíamos tanto... Ríamos e ríamos ao som das marchinhas, levemente enrubecidas pela cubra libre e alegradas pelo cheiro do lança perfume... Ah! Aqueles bons tempos... que não voltam... (a partir daqui começa a ficar aflita, como quase que caindo num transe, O ideal é que a musica comece e ingripar junto com essa transição, talvez ela cheire lança perfume, as pessoas podem passar a mão nela) e por que não voltam, eu me encontro num limbo de tempo suspenso da dúvida. Nessa parte tudo fica nebuloso. O som da marchinha de carnaval.( cantarola o trecho) Eu estava... vestida,olé! e então... Como era mesmo a continuação dessa música?
(num rompante, muito rápido, quase ininteligível)
Ele entrou por essa porta como se fosse assim há séculos, milênios, eternidades. Ele entrando pela porta e eu tragada pela imagem sonho do homem mascarado, acho que cruzamos olhares, talvez não cruzamos, mas era absolutamente certo que talvez fosse eu quem ele procurava na escuridão viscosa do salão, por onde chovia confete e purpurina, serpentina do seu corpo caminhando resoluto sem um segundo para dúvida de que sim, quem sabe era eu quem ele procurava, e ele, o homem máscara, o homem nada, o homem sombra, reluzindo, parluzindo pela bruma do meu esquecimento, no engodo do tempo escorrido, no vento das horas, a cada momento profundo de mim mesmo no céu, a escuridão do salão indo abaixo.
(ela cai, vários socorrem)

Cena 3

MASCARADO (que tira a máscara e quebra a cena)– Ele tava sentado no café lendo jornal. Era um café badalado, e tava muito cheio. Aí uma garçonete apareceu e pediu gentilmente pra que ele sentasse na mesa ao lado, onde ela estava, alheia a tudo, lendo um livro. Assim que ele sentou, eles se olharam. Quando eles se olharam, é como se o mundo tivesse ficado um pouco mais bonito, mais leve, mais agradável. Foi amor imediato.

(cena paralela e simultânea a narração. Narradora vai para fila do café, e espera. Aos poucos, durante a cena, vai entrando gente na fila)

Garçonete – Oi, desculpa... O senhor ta sentado sozinho numa mesa pra 4 pessoas.
Marco – É. (continua lendo)
Garçonete – E nós estamos com um fila de espera enorme...
Marco – E?
Garçonete –O senhor só tomou um café nos últimos 30 minutos.
Marco – Você tá me expulsando?
Garçonete – Não é que...
Marco – Você ta me expulsando!
Garçonete – Não, senhor, eu só disse que...
Marco – Se não tá me expulsando ta fazendo o que?
Garçonete (olha dos lados, sugere) – Por que o senhor não senta aqui nesta mesa?
Marco – Tá ocupada.
Garçonete – Mas ela não se importa. Não é senhora?
Dalva (ela não tira os olhos do livro) – Não.
Marco – Tá bom.(muda-se para mesa dela com o jornal) E traz mais um café.(Garçonete Sai. Para ela) Quem sabe isso não me dá o direito de mais quinze minutos, né? (ela não responde)
Marco (tenta puxa assunto) – Eu sou sempre mal atendido aqui. Acho que eles recebem treinamento pra atender mal. (ela continua lendo) Sabe? Uma pessoa fica esperneando para os garçons e eles tem que desviar o olhar. (ri. Ela continua lendo. Noutro tom) O que você ta lendo? (ela mostra a capa, sem tirar os olhos do livro) Nossa, não acredito!!!! Eu adoro esse livro!
Dalva (olhando pela primeira vez) você já leu?
Marco – É... Não. Ler, mesmo, no duro, eu não li. Mas eu vi a série, e meu pai lia pra mim antes de dormir.
Dalva – Minha mãe lia os três porquinhos.
Marco – Pois é... Essas eram as histórias que meu pai lia. Ele começava sempre com “o cosmos é tudo o que existe, tudo que existiu...
Dalva – “e tudo que existirá” (olham-se. Depois de um tempo). É o começo do livro.

Cena 4
(as pessoas que estão na fila começam a cheirar Bernardo, fazendo comentários sobre um cheiro esquisito, de cera de vela. Bernardo rebate, dizendo que é bobagem. Vai para o centro do palco, luz só nele)
Bernardo – Foi assim que começou. Mas pra vocês entenderem, vocês tem que me conhecer melhor. Meu nome é Bernardo, eu tenho 30 anos e sou formado em física, mas trabalho dando aulas de matemática no segundo grau. Obviamente eu tenho uma visão bem clara do mundo, que se resume em: o que é palpável e mensurável e o que não existe. Isto é, se não pode ser medida ou comprovado por métodos científicos é bobagem. (Começa a parecer uma mão com luva branca mexendo no cabelo dele, e as mãos vão aparecendo e puxando ele, aumentando a intensidade até o fim da cena) Eu nunca mexi com ninguém, não tenho inimizades, não rezo, mas também não faço macumba. Sou um cético, um confesso ignorante nas artes ocultas, e isso de alguma forma, devia me proteger. Mas então começaram a dizer que eu estava pesado, com energia ruim... No começo eu achei que eram os alunos me pregando peças, mas um dia meus colegas também disseram. Começaram e me recomendar benzedeiras, rezadeiras, macumbeiras. Um amigo meu chegou a dizer que a tia dele tinha sonhado comigo. Obviamente eu não dei ouvido a isso, por as pessoas são muito influenciáveis, e, devemos ver que essa coisa mística tá bem na moda, né? Mas um dia eu fui pra uma casa de praia do tal amigo da tia, era uma casa simples, nada demais. Tá bom, vai, era em Peruíbe, a casa era medonha e tava a família toda dele lá. E lá estava a tia. Ela cruzou a sala correndo assim que eu entrei e disse: “eu te conheço, você é Bernardo!” E eu: “claro que a senhora me conhece, eu sou amigo do seu sobrinho há mais de...” Mas ela já foi pegando a bolsa e tirando um saquinho preto (uma das mãos com luvas brancas aparecem segurando um saquinho preto) e dizendo: “eu já sei agora por que minha intuição me fez trazer isto”, e balançava o saquinho e eu (começa a tossir) comecei a ficar confuso (confunde presente e passado) “que brincadeira é essa minha senhora?” (respondendo como tia a própria pergunta) “é o oráculo galáctico” (as mãos tiram de dentro do saquinho muitos leds acesos que jogam no chão do palco, formando uma constelação. Bernardo é puxado para a escuridão, tossindo)

B. O.

Cena 5
(entra no palco descrevendo,de olhos fechados a casa do pai. Vai desviando dos móveiscomo se existissem.)
Menina:
Cheiro de canela. (Meu pai é louco por chá de canela).
Cozinha: geladeira branca, fogão marrom.
Dentro da geladeira: duas malzebier, queijo emental, iogurte de ameixa, três tomates, provavelmente pra mim, vários tupperware de comida feita anteontem e salada de alface lavada.
No fogão: bule com água quente.
Na pia: Cafeteira com café já armado, só apertar o botão. Um prato sujo. Amanhã a Maria lava.
Sala apertada.
Sofá vermelho.
Poltronas verdes em frente da TV. Banquinho do lado da poltrona, onde podem estar os controles remotos e um copo de água vazio, do lado de uma garrafa de vidro, também vazia, de água com gás.
Mesa de jantar maior do que precisava ser. Uma caixa embaixo da mesa pro gatinho brincar.
Quarto do meu pai.
Rádio ligado debaixo do travesseiro, TV com timer, ar condicionado a 22 graus. Com uma toalhinha por cima. Perfume de lavanda
O outro lado da cama, o lado da minha mãe.
O lado que foi da minha mãe.
Intacto.
.
.
.
Jubinha no pé da cama.
Jubinha é o gato do meu pai.
O cheiro do Jubinha.
Igual do travesseiro.

(pro público)

Eu voltei pra casa do meu pai pra passar uns tempos, pra passar uns dias. Eu falei pra minha avó que minha casa tava dedetizando.

(mesmo jogo anterior, de olhos abertos)

Corredor. Andar devagar. Um pouco de medo. Coleção de bibelô porcelana da minha mãe, todos aqueles mini olhos apavorantes olhando pra mim. Mini olhinhos, e os olhos grandes de uma manequim apavorante. Não estão mais aqui, mas pra ir ao banheiro, eu tinha que desviar da manequim. A porta do meu quarto. (entra no quarto)



Cena 6

(Noutro ponto do palco, duas crianças olhando o céu, mas agora Uma tem um livro muito colorido, sobre estrelas, na mão. Conforme a cena vai acontecendo, os atores, no escuro, vão retirando os leds/estrelas do palco)

Outra – Igual ao sol, só que muito longe?
Uma – É.
Outra – Mas quem acende?
Uma – Nunca apaga.
Outra – mas de dia...
Uma – de dia tem sol, que tá mais perto e tapa a luz delas.
Outra (olhando as estrelas, muito espantada) - Nossa!(tempo) Mas então elas tão muuuuuito longe.
Uma – Muito longe mesmo.
Outra – Mais que a casa do Fabinho.
Uma - Muito mais.
Outra – Mais que o Japão.
Uma – Mais que o sol.
Outra – Mais que a lua?
Uma - Mais do que a lua, do que Marte, do que Saturno.
(tempo. Ponderam muito sobre isso)
Outra – Mais do que o céu, então.
Uma – Não. Isso é o céu. Só que é infinito.

Cena 7
(Luz no café)

Dalva – Mas essa parte aqui, que fala de astrologia... É um horror, ele acaba com os astrólogos, chama de pseudo ciência...
Marco – Mas astrologia é uma bobagem mesmo... Vai dizer que você acredita?
Dalva – Ah, eu fiz o mapa o ano passado e...
Marco – Ah, pelo amor de deus, é uma bobagem. Quer ver? (Pega o jornal. A garçonete chega perto.)
Garçonete – Vocês vão querer mais alguma coisa? Já estão aqui há duas horas e...
Marco – Qual seu signo?
Garçonete – Áries.
Marco(inventando) Ariano, seja paciente com todos a sua volta (vendo que ela não acha a menor graça). E traga mais dois cafés. (ela sai, eles riem) Vamo lá, prá mim, que sou libriano... “Não durma no ponto, você pode perder seu amor”. Super vago! Pra começar, eu nem tenho um amor e nem acredito nisso. Aí o cara lê isso e fica perseguindo a namorada por que acha que ela vai trair, sei lá, com o vizinho.
Dalva – É quase o mesmo exemplo que ele dá aqui no livro! Horóscopo de jornal não conta! Você dois são céticos demais.
Marco- Mas ele é cético e poético ao mesmo tempo.
Dalva – É... e místico... essa coisa aí que ele fala do cosmos, ele podia falar de deus. Deus é tudo o que existe, tudo que existiu...
Marco – e tudo que existirá... Mas faz uma diferença brutal, né?
Dalva – Nem tanto. Acho que o nome, sei lá, tanto faz. Jeová, Alá, Khrisna, Cristo...
Marco – O cara lá de cima... A Xuxa chama assim, ué... (Ela ri. Ele ri.)
Marco (estendendo a mão) – Marco.
Dalva (dando a mão) – Dalva.
Marco – Como a estrela?
Dalva – É. Que na verdade é um...
Marco – planeta, eu sei, Vênus...
Dalva – A deusa do amor.
Garçonete (voltando com o café) Mais alguma coisa?
Marco – Não.
Garçonete – Então,o café de vocês tá ali no balcão,junto com a conta, é só tomar lá mesmo e pagar.

(fade na cena, Garçonete vai andando com a bandeja na mão)

Cena 8

GARÇONETE – Era uma quarta feira comum na cidade. O dia ontem tava esquisito. Eu saí daqui e... Já era noite, quase. Na verdade parecia que ia chover, então o céu tava daquele jeito. Escurecendo, mas não dava pra saber se era a chuva que caía ou a noite. Eu fiquei parada aqui na saída um tempo, por que eu vi uma estrela bem em cima da minha cabeça. A primeira estrela que eu vejo. Bem aqui (aponta). Eu ia fazer um desejo,e fiquei olhando. Foi nesse momento que caiu uma gota de chuva bem no meu olho. A primeira gota de chuva. Parecia que ela tinha caído da estrela, ela podia ter caído em qualquer do mundo, mas foi cair bem no meu olho! Foi me dando uma tristeza... Eu já tava meio assim assim e aquela gota... Antes que eu pudesse pensar, eu comecei a chorar. Mas eu não sabia se era lágrima ou era a chuva que caía. E a chuva foi ficando mais forte, mais forte, e começo u a cair justo no momento que eu ia pra casa. Eu fiquei triste por que a cidade ia ficar um caos, trânsito, e eu ia pegar ônibus, o ponto tava longe, e aquela tristeza, e a chuva.
Eu ia andando na rua e a tristeza aumentava, e chuva aumentava. A chuva ficou insuportável, e a tristeza e o choro também. Eu resolvi que naquela tristeza, na chuva, no choro, eu não merecia pegar ônibus. Eu olhei e claro que só passava táxi cheio, só por que já estava tudo muito ruim. Começou a chover por baixo também, os carros passavam bem perto da guia e jogavam água em todo mundo, e alguns faziam de propósito. Aí depois de horas, passou um táxi. Claro que o taxista era bigodudo, pra me irritar. Eu achei que a chuva o choro, a tristeza iam parar, mas eu toda encharcada e o taxista bigodudo pegou o caminho com mais trânsito do mundo, por que naquela hora, com aquela chuva, os carros estavam brotando do chão.
Ficou aquele silêncio insuportável só com o barulho da chuva, do limpador de para brisa e do bigode do taxista balançando na respiração. HORAS. Aí o taxista bigodudo ligou o rádio. (pequena pausa) Ele fez de propósito.
Começou a tocar aquela música, sabe? (começa a tocar close your eyes, give-me your hand, Darling) Aquela, que só fez a tristeza e a chuva piorarem, e o taxista começou a cantar junto, num embromation, e isso fez eu chorar mais, e o locutor da rádio percebeu e começou a fazer tradução simultânea, que em geral é uma coisa muito engraçada, mas a letra da música era muito muito triste. A chuva não parava e então começou a chover dentro do taxi também.
Eu não conseguia olhar pra cara do taxista, mas quando olhei pro lado tinha um casal muito feliz cantando a mesma música e estalando os dedos, e pior, eles olharam pra mim e quando viram que eu estava chorando fizeram com mais força tudo, pra me mostrar que a felicidade existe sim, só não comigo.
E foi me dando uma coisa, o taxista riu e me ofereceu uma bala de menta. Ele fez isso só prá tripudiar, ainda mais eu que odeio menta. E ele enfiou umas 3 balas no bigode dele, e nesse momento aconteceu, como se fosse um sinal: o sinal apagou e a cidade apagou, o estado apagou e o país apagou. O maior apagão já visto, por causa da minha tristeza, por causa daquela estrela que cuspiu em mim. E sem luz, sem farol, a chuva e eu lá, o choro, a música-muito-triste, a tradução-simultânea, o casal-mais-feliz-do-que-precisava, o bigode-mentado.
(Pequeno tempo. Noutro tom.)
Eu desci do táxi e tudo em volta sumiu.
Eu olhei pra cima.
A estrela abriu um vácuo entre as nuvens
Só pra olhar pra mim de novo.
Não caía nenhuma gota de chuva em mim.
Já reparou que quando chove no asfalto, as gotinhas fazem pequenas bolhas?
E depende como a luz bate, cintila.
Cada bolha, uma estrela.
E cada rua, uma constelação.
E a cidade toda estrelada.


(deita-se no chão, na poça d´água. Luz vai descendo, ela permanece deitada. A cena a seguir acontece com a cena 8 ainda suspensa, deixando ecoar a imagem.)

Cena 9
Outra – Tem gente que mora nelas?
UmaNas estrelas não. É muito quente.
Outra – Mas então... A gente ta sozinho no infinito...?
Uma (olhando o livro) – Aqui diz que as estrelas também podem ter planetas em volta. Que nem o sol tem a terra, marte, Vênus... E aí, nesses planetas pode ter vida.
(tempo. Elas olhando pro céu.)
Outra – Será que tão vendo a gente?
(tempo. Uma começa devagar a dar tchauzinho. Num crescente a duas dando tchau, empolgadas)

cont. Cena 8
Garçonete (levanta-se, olha em volta, fala e sai) - Eu fui pra casa pisando em galáxias.


Cena 10

Pai – Senta.
MENINO/NARRADOR – Ele falou isso e se serviu de uma dose de uísque.
(O menino alterna entre narração e estar na cena, os pais continuam falando, de forma que pegamos parte das falas deles. Às vezes pegam radiografias, mostram contra luz.)
Mãe – a gente precisa conversar.
MENINO/NARRADOR – Ela também se serviu de uma dose de uísque.
Pai - aqueles exames que você fez, sabe?
Mãe – saiu o resultado.
MENINO/NARRADOR – Se eu entendesse o que tava acontecendo e tivesse idade suficiente, levantava ME servia uma dose de uísque.
Mãe – Quer sorvete?
MENINO – Antes da janta?
Mãe – Hoje pode.
MENINO – Eu fiz alguma coisa errada?
Pai – Não, ninguém fez.
MENINO/NARRADOR – eles tavam preocupados mesmo.
Pai – ...no vestibular.............
Mãe – Não vai acontecer nada, mas...
MENINO (pros pais. No passado) – mas eu não tenho idade pro vestibular ainda...
Pai – As dores de cabeças, sabe?
MENINO/NARRADOR - Iam falando alguma coisa que eu não entendia direito, mas pelo jeito era sério.
Pai – é tipo um machucado por dentro.
Mãe – Não é grande...
MENINO – Dentro da onde?
Mãe – Vê, ta nessa região (mostra radiografia)
MENINO – Essa é a minha cabeça?
Pai – É.
MENINO – Parece um esqueleto.
Mãe – É o seu esqueleto.
MENINO – Por dentro?
Pai – É.
MENINO – Onde é o machucado?
Mãe (apontando na cabeca dele) – Aqui.
MENINO(começa a cutucar a cabeça no lugar) Nem dói.
Mãe – As dores de cabeça...
MENINO/NARRADOR – Eu tinha
Pai – atrás do ouvido esquerdo.
MENINO/NARRADOR – uma espécie de
Mãe – pode ficar surdo
MENINO/NARRADOR – tumor
Pai – de um dos ouvidos só!
MENINO/NARRADOR – Não muito grande
Mãe – do tamanho de uma bolinha de ping-pong.
PAI – Tem que operar nessa sexta.
MENINO/NARRADOR (sentado jogando uma bolinha de ping pong) – Mas vocês podem ficar tranqüilos. Não é uma história triste. Eu nem morri nem nada. Tanto que to aqui falando, e nem é do além. Mas fiquei surdo mesmo. De um ouvido. Nem se nota. (uma atriz fala algo no ouvido bom, ele não reage. Ela fala no outro.) Eu disfarço bem. (pra ela) Obrigado.(pega uma das bolinhas) A gente já pode pular pro dia da operação agora.

(atores entram com edredon, e travesseiro, montam uma cama na vertical. Ele deita e dorme. Mãos com luvas brancas começam a aparecer e perturbar o sono dele. Puxam ele para trás do cobertor, qdo sobe é a mulher da próxima cena.)

Cena 11
(numa cama em pé, a mulher dorme coberta até quase a cabeça pelo edredon. O sono se agita, aparecem mãos com luvas brancas por baixo do edredon, que acariciam ela, no começo mais leve depois mais forte. Ela se agita mais, cobre a cabeça e sai com um cano de sucção dentro da boca, as mãos tiram o cano. Tosse, se agita mais. Uma voz esquisita cantarola: “E, quase não volto mais aqui...prá ver Peri, beijar Ceci...”, talvez a própria mulher cante. Acorda num rompante)
Mulher - Cavalos. (Suspira) Acho que começa com cavalos (tempo) mas depois fica tudo nebuloso. Cavalos, e pessoas dançando. Era um carrossel, luzes, confete. Não sei. Os cavalos trotavam, giravam, rodopiavam na multidão. Uma música (entra touradas em madri, mas só num pianinho de carrossel). Era carnaval? Era um salão, minha cabeça rodando no salão.(faz sinal de castanholas com a mão) Olé! Como é que chama isso? É... castanholas, isso, eu era espanhola e estava num salão de baile, todos mascarados, minha cabeça, eu tonta acho que de champagne ruim, não... Minha cabeça, zuim.....zuiiiiiiiiiiim. Então foi que aconteceu, eu não entendo, ele tava aqui agora... entrou por essa porta como se fosse assim há séculos, milênios, eternidades. Ele entrando pela porta e eu tragada pela imagem sonho do homem mascarado, acho que cruzamos olhares, talvez não cruzamos, mas era absolutamente certo que talvez fosse eu quem ele procurava na escuridão viscosa do salão, por onde chovia confete e purpurina, serpentina do seu corpo caminhando resoluto sem um segundo para dúvida de que sim, quem sabe era eu quem ele procurava, e ele, o homem máscara, o homem nada, o homem sombra, reluzindo, parluzindo pela bruma do meu esquecimento, no engodo do tempo escorrido, no vento das horas, a cada momento profundo de mim mesmo no céu, ele veio até mim e minha orelha pode sentir seu hálito certeiro quente de homem sonho sombra de chama chamando o dia que ia nascer, ele disse, meu deus? O que ele disse? Eu me lembro que ele disse e isso poderia, acho que se eu lembrasse, minha vida... ele disse, como era? Tão longe a voz do homem noite, a noite escorrendo, o som da música, ai..... eu caí no sono? Acordei? O sonhos eles,... cadê você homem sombra, meu redentor de mim, guiando minha vida, limpando céu luz de cor... eu caí... desmaiei no sonho, bati a cabeça, acordei na vida: a escuridão do salão indo abaixo.


Cena 12
(os dois rindo)
Marco – Nossa, ela praticamente expulsou a gente!
Dalva – Tudo bem, eu tenho que ir pra casa, já é tarde.
Marco – Não, é cedo.
Dalva – Eu preciso ir por que...
Marco – Escuta, fica. Olha. A gente pode sentar aqui, aqui nessa praça mesmo e ficar... sei lá, vendo o cosmos.
Dalva (olhando pro céu)– Mas aqui não tem estrela nenhuma. Nem a lua dá pra ver. É um quadradinho de céu.
Marco (também olhando)– É. (tempo) A gente pode imaginar.
Dalva (pequeno tempo, olhando pro céu. Entra no jogo)- Aqui, bem no meio é a Via Láctea. Caminho do Leite. È o leite que saiu do peito da deusa Hera quando acordou aborrecida por amamentar Hércules, filho de Zeus.
Marco – A Via Láctea é nossa galáxia espiralada formada há mais de 13 bilhões de anos, por mais de 200 bilhões de estrelas, onde o sol é só mais uma, de um dos braços menores, num ponto galáctico qualquer.
Dalva (apontando outro ponto)- As Plêiades. Conta a história de ninfas que, cansadas de serem perseguidas por Órion, pediram a Zeus que as transformasse em estrelas.
Marco (apontando cada uma das estrelas da constelação) Electra, Calaeno, Taygeta, Maia, Merope, Asterope, Alcyine, Atlas, Pelione. As Plêiades. São estrelas muito jovens, acabaram de se formar, por isso ainda estão cercadas de poeira cósmica, seguindo sua trajetória pelo oceano sideral, como golfinhos no mar, procurando seu lugar. Como nós. Feitos de poeira de estrela. Estrelas nascem em berçários, como a nebulosa de Órion.
Dalva – Órion, que perseguia a Plêiades e era perseguido pelo escorpião que foi morar no céu. A constelação de escorpião fica do outro lado do céu. (fingindo procurar) Ali.
Marco – O cinturão de Órion são as três Marias. (também procurando) Ali. E ali é o Cruzeiro do sul.
Dalva – E ali a Ursa Maior.
Marco – Não. A Ursa maior só da pra ver no Hemisfério Norte.
Dalva –Mas escuta, aqui não dá pra ver nenhuma estrela, eu quero ver a Ursa Maior! (riem. tempo).Ali é constelação de Cardiacae. Conta a história de uma menina que atrasou 5 minutos pra coisa mais importante de sua vida, mas depois teve um grande encontro. A principal estrela dessa constelação é a Dalva.
Marco (completamente em dúvida) É?
Dalva(um pouco rindo) Não, essa eu inventei mesmo.

Cena 13
(Quarto do hospital.)
(longo silêncio. Pode ser que essa cena possa começar antes no final da cena anterior, com os narradores jogando as bolinhas para cima, principalmente se elas forem fluorecentes, parecendo estrelinhas saltitantes. Os pais se olham, o menino/narradores jogam um bolinhas de ping-pong contra o chão e pegam. O barulho incomoda um pouco. )

Mãe (levantando e pegando suas coisas)- Bom, então...
Menino (de repente) – Você já vai?
Pai (juntos)– A mamãe precisa...
Mãe (juntos)– Amanhã eu trabalho...
MENINO/NARRADOR – Eu nem sei por que me espantei.
Mãe – O papai vai dormir aqui com você.
Pai – A mamãe volta amanhã cedo
Menino – Tá.
(ele se levanta, esperando algo. Sem jeito, a mãe arruma a blusa do menino. Ele imóvel. mãe sai. Menino volta a sentar e jogar bolinha no chão. Pode ter partitura com todo o coro levanta arruma blusa, volta a sentar. Voltam a jogar bolinhas no chão)
Menino/ Narrador1 – Não sei quanto tempo passou.
Menino/ Narrador2 (2, 3 e 4 falam quase simultaneamente) – meia hora
Menino/ Narrador3 – um minuto
Menino/ Narrador4 – dez dias
Menino/Narrador1- ou se ainda estou suspenso no tempo daquela sala fria.
(tempo)
Pai – Tá com fome?
Menino – Não. Um pouco. Acho.
(toca telefone. Todos olham, ninguém se mexe. Toca de novo. Pai atende. Menino para com a bolinha)
Pai – Alô, pois não? Sim, é o carro da minha esposa. Ela está? Tá bem. Obrigada. (para o filho) Sua mãe tá chorando no carro, sem conseguir ir embora.
(menino sem dizer nada, num suspiro sai correndo. Luz apaga no pai. Menino continua correndo no lugar)
Narradores – Eu corri muito. Eu não sabia direito por que eu tava correndo, nem se eu podia correr. Eu não sei nem se meu pai tava correndo atrás de mim. Eu corri por que (menino encontra a mãe chorando e abraça ela bem forte. Bolinhas pingam no chão. Ela, no começo dura, depois vai abraçando aos poucos. Podemos pensar numa partitura Pina Bausch. Pai logo depois abraça os dois.) De tudo ou quase tudo, ou talvez quase nada, que eu me lembro ou que eu entendi ou que eu acho que aconteceu, se aconteceu ou se quis que acontecesse: a operação, anestesia, o tumor, os médicos, nada tinha importância: tudo aconteceu por esse abraço.

Cena 14
(olhando ainda pro céu, talvez já deitados no chão)
Dalva – Agora eu preciso ir mesmo. Só tem ônibus pra minha cidade até meia noite.
Marco – Onde você mora?
Dalva – No vale do Jequitinhonha.
Marco – Nossa, e onde fica isso?
Dalva – Na beira do mundo. Mas lá dá pra ver um monte de estrela de noite.
Marco – E você veio aqui fazer o que?
Dalva - Vim prestar vestibular.
Marco – Pra que?
Dalva – Eu ia prestar medicina, mas não prestei.
Marco – Por quê?
Dalva – Eu atrasei pra prova. Aí fiquei frustrada, fui pro café esperar o tempo passar. Não quis ir pra casa, falar que eu atrasei, aí minha mãe vai falar que eu sempre atraso, desperdício de dinheiro etc... depois eu falo que não passei e pronto.
Marco – Que chato.
Dalva – É, mas pelo menos.. (tempo. Sem jeito) Aprendi um monte de coisa sobre o céu.
Marco – Eu também. (tempo) Dalva?
Dalva – oi.
Marco – Você acha abusado se eu pedir seu telefone?
Dalva – Não. Você tem papel?
Marco – Não... Vamos fazer assim: você anota no livro e me empresta pra ler. Aí, quando acabar eu te ligo pra devolver.
Dalva – Agora eu achei abusado. Mas achei bom. (anota telefone no livro e dá pra ele)
Narração - Aí ela saiu e voltou pra pequena cidade dela. Sabia que não era à toa que tinha perdido a prova, que tinha ido naquele café, que tava cheio, que tinha encontrado ele e... Ele saiu também pensando o que será que queria dizer tudo isso, como encaixar um encontro tão bom na sua vida tão esquisita, fazendo uma faculdade que ele não gostava. Indo até o ponto de ônibus, ele pensou se aquilo não podia ser realmente um sinal divino, se o encontro podia mudar sua vida, talvez... E pensando em todas essas coisas ele dormiu no ponto. (Ele dorme no ponto, o livro cai no chão. Acorda assustado, vê que o ônibus está chegando, faz sinal e sai atrás do ônibus. O livro fica no chão. Passa uma personagem de outra cena e pega o livro)

Cena 15
CENA 2
(atores vão entrando em cena, as falas podem ser divididas entre todos os atores com suas partituras)
Meu quarto! (entra feliz mas se decepciona)
Cadê minha cômoda?
Aqui ficava... quem mexeu na minha cama? Ela não ficava aqui na porta...
Cadê as estrelinhas que eu coloquei aqui no teto?
Cadê meu poster do ... ( eu ia por Michael Jackson pra fazer piada, mas pode ser qualquer referência)
Isso aqui virou um depósito!
O que essa bicicleta ergométrica tá fazendo aqui?
Onde estão meus livros do tio patinhas?
Cadê minha vitrola?
Filha crescida - Eu queria mesmo era achar o meu vestido...
(filha criança entra com o vestido fica junto com a filha crescida. De repente as duas vêem a manequim. Uma só no começo)
Filha criança - Por que ela está aqui?
(manequim começa a chamar a menina, vão entrando as outras conforme o medo vai aumentando.)
Filha criança- Eu quero ir no banheiro
Filha crescida – Vai
Filha criança – Não dá. Tenho medo.
Filha crescida– Medo do que?
Filha criança(apontando manequins) – Dela
Filha crescida Mas elaé só uma boneca.
Filha criança– Eu quero meu pai. Acende a luz?
Filha crescida – Acende você.
Filha criança– Eu tenho medo. Cadê meu pai? (grita, procurando)Pai?
Filha crescida – Não precisa chamar seu pai, não precisa ter medo. É só uma boneca. Eu não tenho mais medo!
Filha criança – Eu to com medo!
Filha crescida- Medo do que? É só uma boneca, sua burra!
Filha criança– É medo, você nunca teve medo?

Manequim se aproxima das duas, e pega uma delas pra dançar. A idéia é que ela dance com seu medo, e “vença” o medo. O ator que faz a manequim deve ser o mesmo que faz o mascarado e o Bernardo, para fazer alusão a cena do carnaval, naquele plano mito sonho de imagens.

Cena 16
(vendo as estrelas placidamente, enquanto a outra menina dança com manequim)

Outra – Nos outros planetas é o mesmo deus?
Uma – Ichi. Nem ali na esquina é o mesmo deus.
Outra – Como assim?
Uma – Por exemplo, você vai na igreja, o Maurício vai na sinagoga. Não é o mesmo deus.
Outra –Minha mãe disse que deus é tudo.
Uma – Se deus é tudo, deus também é as estrelas?
Outra – É. E o céu.
Uma – E o infinito, e o cosmos todo.
Outra (dando de ombros )- É.
Uma – E TODAS AS COISAS.
Outra – É.
Uma (tempo. Pensa) – Se deus é tudo, o capeta também é deus.

Cena 16
(homem caminhando no lugar, pessoas cruzam por ele, passam na mesma direção, como se ele estivesse atemporalmente numa rua movimentada. Cantam Touradas em Madri de forma distorcida, talvez possam estar todos mascarados, ou com uma parte do figurino de carnaval, se não ficar cafona. Homem para alguns e pergunta que música é aquela, de onde vem, todos estranham: a música está na cabeça dele)
Homem (num rompante, fala para uma passante como se saísse se sua boca sem controle)Eu preciso te dizer isso. (percebe que falou)
Passante (aqui pode ter uma pequena alusão a garçonete saindo do café)Sai, ô! Credo! Hoje tá todo mundo contra mim! (desvia dele)
Homem (ainda andando) – Eu preciso... Eu... como é que era... Essa música... eu preciso... Eu tava numa boate? Era boate? Não. Um baile, todo mundo fantasiado... Máscara. Eu tinha uma máscara! (tira a máscara de um dos passantes, coloca no rosto) Eu estava andando pelo salão? Não! Eu cheguei... É isso. Eu entro no salão e olho. Duas olhadas eu sei que ela está lá eu quero dizer, eu vou dizer a ela que... cadê? Procuro o som das castanholas, risadas eu saio, entro no salão e entro no salão mais um salão a música, eu entro e procuro,como vou saber o que dizer a quem dizer? Eu entro e procuro. Assim. (entra no salão várias vezes, procura, cada vez com uma das meninas) Ela, não é ela é aquela! Eu sei, pois ela estaria assim, tocando castanholas numa fantasia de carnaval, eu disse: tudo é som, a música.... Peraí. Concentra. Eu entro no salão, máscara. Nosso olhares se cruzam, eu atravesso o salão, um pé outro pé um pé outro pé um pé outro pé... Olho. Assim, ao pé do teu ouvido.
(chega até o ouvido dela, elas desmaiam. Toda cena desemboca num caldão mnemônico)


Cena 17

Aos poucos vai virando uma dança mais distorcida, que dá medo. Mescla-se essa cena e cena do carnaval. Retoma-se a figura da dança com o zorro, mistura-se com a dança com a manequim. É uma grande cena onírica, lúdica, onde ressoam todas as cenas da peça.
Tudo se repete um pouco distorcido, com leds pelo corpo dos atores, num misto de partitura dança, flash-back-transe. Quase todos personagens entram no meio da cena do medo.
O abraço do menino com a mãe volta, ele saindo, se desvencilhando. O menino na cena do medo, tirando a bolinha de ping pong da nuca, como se fosse a operação.
A cena do marco e da Dalva, ela dando o livro pra ele, saindo de lá, dormindo no ponto. Deixando o livro, outro personagem pegando (talvez a Garçonete).
Garçonete, algumas danças na chuva, ela no chão, tira coisas brilhantes da boca ela pisando em galáxias.
Na cena do carnaval, ela não cai. Ele dança com ela, não dá mais pra saber se é essa dança, a do manequim, ou o que. Aos poucos Ele começa a falar para ela o poema. Mas quem termina de dizer é ela, a espanhola, pois a cena começa a se transformar na cena da cama/medo, com o Bernardo na cama, que faz sua “limpeza”, mas a gente tá vendo “o lado de lá”.

eu queria te dizer isso
aqui
o mais perto possível de deus,
ao pé do teu ouvido,
à sombra das galáxias cintilantes

talvez eu te diga isso
e
talvez seja estranho
e
talvez você se espante
aqui
quase longe
à sombra das galáxias cintilantes

é assim (e que assim seja)
doravante
de hoje em diante
não há mais dor nem mal nem medo
e
nem desejo
aqui distante
ao pé do teu ouvido
à sombra das galáxias cintilantes.

Cena 18

(Bernardo acorda num repente, como de um afogamento.)

Tia - Bernardo? Pode abrir o olho agora.
Bernardo (ainda achando tudo estranho) – Onde eu to?
Amigo – Em Peruíbe.
(tia começa a recolher as pedrinhas do chão)
Bernardo - Eu dormi?
Amigo – Não.
Bernardo – Eu falei?
(amigo faz que sim com a cabeça)
Tia - Já passou agora, Bernardo. Descansa. Quando você tiver que lembrar você vai lembrar.
(as duas crianças cruzam a cena, como se fosse parentes do amigo de Bernardo)
Uma – Lá da praia agora de noite dá pra ver mais!
Outra – Eu só posso ir na praia a noite com a minha mãe.
Uma – Ué. Vai lá e chama ela. Eu vou pedir pro meu pai ir com a a gente.
Outra – Tá. A gente se encontra lá.
(uma vai até amigo de Bernardo, outra sai de cena, vai falar coma mãe)
Uma – Pai, me leva até a praia ver as estrelas?
Amigo – Agora?
Uma – É! Agora que tem estrela.
(amigo olha pra Bernardo)
Bernardo – pode ir. Eu to bem.
Amigo – Então tá. Não quer ir também?
Tia – Vamos...
(todos a caminho da praia, Bernardo, quase mudo, fica perto da tia, apavorado)
Amigo – Cadê sua amiguinha?
Uma – Foi chamar a mãe dela.
Amigo – É? A mãe dela é casada?
Uma – Pai! Pára!
(Outra vem com a mãe. Eles se olham por um tempo, se reconhecendo, sem afetação)
Outra – Vamo, mãe?
Uma – É, pai, vamo que eu quero ver o Cruzeiro do Sul!
(eles continuam se olhando. Tia e Bernardo vão indo na frente, se sentam num canto do palco, onde é a praia. Crianças ficam olhando um tempo)
Amigo (para a filha) – Dalvinha, vai indo na frente.
(as duas crianças vão saindo)
Outra- Você chama Dalvinha, Teca?
Uma – Não eu chamo Estela Dalva, mas eu odeio. É por causa da Estrela Dalva.
Outra – Igual minha mãe, só que ela é só Dalva.
Uma – É nome de velha.
(sentam-se na praia)
Mãe/Dalva – Marco?
Amigo/Marco – Dalva...
Dalva – Sua filha chama Dalva?
Marco (irônico) – Você viu que coisa? Deve ser o destino.
Dalva – É.
(vão andando até a praia também. Sentam-se. Tempo)
Outra – Mãe, você acredita em coisas escritas nas estrelas?
(sem resposta)
Dalva – Eu fiquei pensando durante muito tempo por que você não me ligou.
Uma – Pai, como é que é aquela história do negócio do leite?
Marco – Eu ia te ligar. Mas, eu saí daquele dia e acabei dormindo, meu ônibus passou rápido, eu esqueci o livro. Quando voltei ele não tava mais lá.
Uma – Pai, você acredita que o destino está escrito nas estrelas?
Outra – Hein, mãe? Você não acredita?
Dalva – No que?
Outra – Em destino escrito nas estrelas?
Uma – Hein, pai?
Dalva (sem tirar os olhos dele, ao mesmo tempo) - Não.
Marco (sem tirar os olhos dela, ao mesmo tempo) – Acredito.

Fim.