Eu sempre olhei pra você com olhos mais fundos do que reservava aos outros.
Então via o fundo de espelhos distorcidos, da minha sombra, do que não sou.
Meu amor se deu pela negação, pelo que difere.
E penso como podem duas pessoas diversas em tudo,
serem iguais e próximas.
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Não sei direito em que hora desse longo dia que transpassamos juntas
eu passei achar que o espelho era eu, e que era eu quem distorcia
os cios e os ócios e as horas e as palavras.
Depois ainda fiquei pensando que o espelho era algo,
nem meu nem seu, mas algo do mundo e da vida,
e que alguém estava fazendo uma brincadeira de mau gosto com tudo.
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Mas era de gosto fino, de amor.
Um dia eu li, entre os escritos dela:
espelhos são cérebros ao contrário.
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Gostei dela mais naquele minuto.

Me visitaste hoje nos sonhos, menina
onde por hora possuo-te, senhora.
Ouviste as cândidas palavras
que gostaria de dizer-te em vida.

Porque Morpheus é meio irmão de Thânatos,
e abraçam-se - sono e morte.
Passeávamos as duas, mãos dadas
e abracei-te voluptuosa e mórbida.

De resto, são brumas
como as névoas da manhã
do dia parido sem sol.
'Sou como a água: com fluidez atravesso o portão que se abre para mim.'

Mão Auto existente Azul
(por que procuro definições)
E novamente aqueles olhos que guardam facas de pontas sangrentas, olham-me acusatórios. Penso em sutilezas. Não as tem? Por que eu, esfinge de mil questões sei mais perguntas que respostas. Posso indagar-te sobre fins e começos, mas cansei-me das acusações. Pois se foste tu que arcaste com meus mundos, se foste tu que também escolheste ser pedra ao lado de meus oceanos, ser porto, ser âncora. Sim, necessitávamos de chão. Tu que escolheste sê-lo. Por que não escolheste ser barco e me navegar? Por que não gaivota, enguia, gota, orca, carangueijo, cobrad´água, octopus, navio, jangada, tronco, pelicano, peixe, algo movente? Foste tu a escolher a comporta e eu me fiz por isso maré baixa.
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Os tempos mudaram e tuas comportas de nada me servem, me barram. Tua âncora enferuja com a longa corrente que arrasto. Tua pedra se gasta e te tornas areia. O que faremos com as águas? Deixemos que Atlanta se inunde e esperaremos impassíveis os escafandristas apocalípticos?
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Se a cura para seixo e rio é brisa e labareda, vale a dor de arder no fogo dançante para contemplar a libertária ciranda em que os pactos se emendam? E se os pactos forem trocados por combinados fluídicos de dureza relativa ao estofo da alma? E se a alma for estufada com finos cetins púrpuras e maná dos deuses e, ao invés de âncorada por latros duros, lançada com potentes asas como as que sonhaste, asas de dragão, que não suportam o peso réptil, mas te leva onde desejas soprar o hálito-fogo?
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E se déssemos as mãos e alcançássemos vôo, tu, com as pequenas asas escamosas e eu com as minhas - que a minha estrutura não suporta quando abertas, tamanha envergadura do que sonho e tão fraco e diminuto o corpo desnutrido? Poderíamos balancear o curso? Cairíamos as duas com nossas ilusões de corpo?
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Não posso amarrar-te a mim, nem obrigar-te a vir.
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Dá-me a mão. Quero mostrar-te algo: vê, também há escamas em meu rabo de serpente. Trinca os dentes tu também naminha carne. Prefiro ser as duas serpentes infinitas entrelaçadas junto a ti do que esta, estúpida, que devora sozinha sua vértebra.
Porque chegas assim, menina nos olhos, e olhas dentro dos meus
E porque os meus, treinados para distração, concentram-se nos teus,
agradeço todos os dias por ser feita de outra matéria que os colhões.
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E porque roubas de mim algo que me é precioso: paz
Mas me dás algo ainda mais caro: o dom, a fagulha
Não te deixo partir
E também não vou.
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Talvez eu vampira,
e que tu ardas em sangue
Pudessem as rochas moldarem-se aos leitos dos rios!
Mas sabemos que não, que são as águas que se moldam.
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Ainda que por fim, ao cabo de milhões de anos, acabem
por encontrar a justa forma: furam pedras, abrem caminhos,
aos humanos olhos são as águas que se movem.
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Mas também fazem areia: amorfa, disforme, infértil.
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Como eu, água, saberei, quando se forem os séculos, se abri caminhos ou cavei desertos?
Tens dois lados, senhora, me disse em sonho:
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um, com o qual segura cajado-espada-martelo
e persegue com determinação divina
tudo aquilo que é podre, caótico, burlesco
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é desse lado que figuram os monstros,
que a fantasia anda à sombra ao lado
de sereias, vampiras, dores e profundezas.
desse lado também que nascem as paixões
e a mão segura estraçalha prontamente
o arroubo, o frêmito e o enredo.
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desse lado, senhora, podes tudo
e tudo perdes: os cajados, as sereias
por fim se destruirão, e não saberás então
se foste tu que os destruiste ou eles a ti,
e cairá nas profundezas do oceano.
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mas do outro lado, ao sol, derramas flores
sobre tua própria criação,
e contemplas também tua parte de Deus.
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Há carismas, melmóides e floretins brilhantes
Parluzindo e esvoaçando ao redor, guiando
Os passos dos que, por opção e júbilo,
te seguem e contemplam também a luz.
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Se não há arroubos, há amor,
em grandes e caudalosas ribeiras,
e dessa água doce bebes e alimentas as tuas crias.
Por que há crias e regras, e disciplinas rigorosas
Onde também por tocar um cristal
podes estilhaça-lo, criando luzins.
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Não podes escolher entre um e outro
Por que sois os dois.
És duo, e serpente e esfinge,
criaturas como tu são os humanos.
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Aliviei-me. Sou humana?

Todo dia

Eu ia escrever uma coisa muito inteligente, mas
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em se tratando do dia,
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resolvi varrer a casa e fazer almoço.
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olha Posted by Hello

Nascimentos das garras

Eram grande olhos, muito azuis, que olhavam muito através de mim. Talvez uma porta por trás da cabeça. Eu ainda achava que eram prá mim os olhares doces dos grandes olhos muito muito azuis.
Atrás deles, uma janela, onde mostrava uma noite muito preta, sem luz, sem avião e sem lua. Talvez existiu um momento que fez um sentido e gravou na minha retina a cena. Amanhecia.
Era o quinto ou sexto copo de vodca. Um cheiro forte de noite etílica. Mas livros, muitos livros, contos, e poesia embriaavam mais do que o álcool.
Sugava meu sangue de tempos em tempos, e com goles de vodca e C. F. Abreu. Eu, Bloody Mary, estava ali por gosto, mas poderia sair, caso quisesse. Bastava abrir a porta atrás da minha cabeça, erguer o corpo e sair na noite muito sem lua sem olhar prá trás. Mas eram tão azuis os olhos e tão doce a poesia, e era só o meu sangue que eu dava em troca. E ainda não havia me tornado o que sou: serpente-esfinge-de-olhos-pintados. Não era portanto essa eu de agora que havia se apaixonado pelos olhos.
Ela, meio vampira, meio sereia de grito poderoso, me prendia com o olhar e o canto. Dizem que os vampiros derretem na luz do sol. Mas não foi assim não.
Eu vi, na janela atrás dos olhos, a noite virando dia, forçando a beira do céu prá romper. Vi os olhos ficarem da cor do azul vespertino, um azul específico. Ou foi o dia que tirou o azul dos olhos vampirescos. Eu olhava fixamente, tentando apreender o encanto. O dia alto no céu azul claro, sem nuvens.
Não tinha força para levantar, mas o que me prendia não estava mais lá. Como que por magia, ou pela falta dela o meu corpo ergueu-se, saiu pela porta e ganhou o dia.
Assobiava de felicidade. Dormi três dias. O corpo refez o sangue.
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Quando acordei, reparei numas unhas de gato-leão nas mãos. Essas mesma que carrego nas minhas duras patas.
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Inda encontrei, anos depois, a sereia-vampira, mas a magia havia partido. Talvez por que fosse dia, talvez por que já fosse eu esfigeorobórica, mais preocupada com meus encantos.

Noite de São Bartholomeu

Tudo gritava dentro de mim e eu não sabia por que. Como se antevisse uma coisa dessas, dada a tragédia.
Doía um pouco a barriga dela, eu acho, e tinha sangue pelo quarto. Era hoje mesmo, como foi.
Pariu um gato cinza ou quase preto, muito pequeno, menor do que podia ser um gato quase cinza, ou preto. Não o queria. Em meio a outros filhotes grandes, olhos abertos, um quase feto preto miava. Um rebento.
Eu sentia medo. Ela agia naturalmente, como se deixar sua cria a mercê do por vir fosse o natural naquele momento. Naquele e noutros. A natureza é sábia, não? Não dá prá saber por quê isso aconteceu. Por mais que eu queira.
Foi muito rápido, e eu já sabia. Ela saiu, veio a outra, pantera negra implacável. Duas lambidas e uma bocarra que abocanhou bem a cabeça. Fez dois furos. Em meio a meus gritos de pavor, ela saiu, deixando aquele filhote enjeitado pulsando sangue. Pegamos no colo. Não no colo, nas mãos, diminuto moribundo. Ele respirava, miava. Depois parou de miar, mas arfava. Não parava de sair sangue da cabeça dele, e dor e lágrimas de mim. Durou uma hora de agonia. Morreu.
A mãe foi lá, olhou, não achou grande coisa. Nós achamos.
Não sei se ela pariu outros, antes ou depois que tiveram o mesmo fim, ou um fim mais completo: devorados.
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De manhã, a mãe que rejeitou sua cria, amamentava os filhotes da assassina de seu rebento.
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Conviver com animais é os amar como são. São mais tetas para esses sete filhotes, são menos bocas para dividir o leite.
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PS: Por que não existe uma palavra específica para a mãe que perde seu filho, como existe a palavra orfão, para o contrário respectivo?

Nha Vida

Hoji n`odjal
Hoji n`odja homi di nha vida
Ê cenam Ku mon n`fica sima pomba perdida
N`amor bem dam razon di vivi
Bem intchi nha vida di kusa fasi
Nhas horas alegri n`krê passa Ku bó
Nhas horas tristi n`krê passa ku bó
Nha passa tempo n`krê passa ku bó
N`amor ami n`naci pam vivi ku bó
Bem pegam no mom
Bem lebam ku bó
N`krê bai na bu ragass
Refrão
Bem inxinam tudo kusa k`inda n`ka sabi
Bem lebam ku bó inxinam tudo kel ki bu prendi na vida
N`amor bem dam razom di vivi
Bem intchi nha vida di kusa fasi
N`sta raserva nha vida pa bó
N`amor ami n`naci pam vivi Ku bó
Refrão
Ó kim sta ku bó pa mim mundo ka existi màss
Ó kim sta ku bó mundo feto só di nôs dôs
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(Lura)
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Não entendeu?

Reconhece

Olho em volta. De um lado e de outro estranhos: minha família. No espelho, uma estranha espreme minhas espinhas.
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Em que corpo vim parar, deus meus?

Auto descrição matutina

Não há espelhos que reflitam meu ser, e sou portanto, não imagem. Se me miro nas águas cinzas das poças paulistanas vejo apenas uma menina, com olhos pintados e brincos. É feliz, acho. Se olho nos olhos dela aí sim vejo: esfinge, de duras garras. Mas oroborus que se come-se. Se sou leão, sou metade serpente, e tenho asas de águia. Acho que tenho chifre, não sei. Um apenas, como unicórnios, mas não me transporta. Impulsividade de búfalo à sombra. Sonhadora, é provável. Capaz de loucuras. Dança no meio da rua, pisa na poça e a não-imagem se turva.
A cabeça onde esfinge manda propõe enigmas onde sou as duas pontas, a esfinge e talvez também Édipo. Miro nos olhos dela e fico embasbacada, por que contenho todos os enigmas do mundo, que se resumem em um: eu ou não eu?
A serpente, que só se sacia com o próprio gosto de sua pele trocada, devora um pedaço da cauda, que é sua e de outrem. Giro em torno de mim mesma e só vejo a tal serpente me comendo, que ainda sou eu, tal como um sonho que se passa dentro do próprio umbigo. Um gato. Uma chama de fogo azul. Na nuca, asas. Na testa, chifre. Na cabeça: a esfinge, a serpente, a nuca, a testa, a cabeça: e dentro dela esfinge, nuca testa e serpente e cabeça: esfinge, nuca...
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O que resta da menina de olhos pintados?

Cedo em São Paulo

Eu disse que gostava de acordar cedo. Não menti, não. Eu levanto cedo prá ver minha casa, meus gatos, meus cachorros entendendo o dia. Acordo cedo porque gosto de surpreender o sol. As seis e meia todos em casa já comeram. As sete passo o café. Tomo banho. Escrevo. As oito a casa está limpa e de pé.
Na minha casa-paraíso, o sol nasce devagar e faz tanto silêncio no mundo que dá prá ouvir ele espreguiçar. Uns passarinhos revoam, atrás de minhocas e fugindo do olhar atento dos gatos 'a espreita. Gosto de andar na penumbra e deixar meus olhos se acostumarem aos pouco com a luz. Eu ouço o estalo das plantas começando a fotossíntese diurna. Dá prá escutar o despedir das estrelas no céus. Mesmo porque, lá o céu é estrelado.
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São cinco horas da manhã e estou em São Paulo. O barulho dos ônibus é o mesmo que as cinco da tarde. O sol vai chegar de repente, já atrasado. Não estou na minha casa. Essa casa, como a cidade, não descansa. Não há o que fazer, não encontro meus gatos, não ouço passarinhos, não existem plantas. Existo eu, um cedrninho e uma caneta. Muito barulho: é dia?
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Por que acordar tão cedo numa cidade que não dorme, numa cidade onde os cheiros, as casas, o dia e as cores são cinzas?
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São cinco e doze e eu já acordei. São Paulo não dormiu.
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PS1: Em pequena, a trilah sonora das mnhãs era o rádio do meu pai que gritava "a cidade não desperta/ apenas acerta/ a sua posição".
Ps2: Ainda bem que amanhã já é paraíso.

Porque a esfinge é um bicho feio

Eu, enfinge de duras garras, na tua frente proponho-te um enigma assim, de duas pontas:
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De um lado eu inteira, nua, dançando numa corda bamba com uma sombrinha minúscula. Talvez use lindas sapatilhas de cristal, e a corda seja irreal. Se olhares bem, verá dos meus olhos escorrer sangue, ou lágrimas tão vermelhas quanto. Talvez eu esteja olhando para baixo, amedrontada, para jacarés famintos, ou uma horda de ostrogodos sedentos.
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Do outro lado, eu, mas não inteira, em pedaços. Uma compota-geléia-doce-de-casca feita da minha carne. O sabor é imperdível. Talvez eu ainda sorria o meu túmulo de açúcar, feliz por guardar doçura e paz. Acima do pote, é possível que enxergues gatos, cachorros e plantas: meus amores. Abaixo do pote, verás um grande gramado, onde nascem ervas de cheiros incríveis e curativas: meus aprendizados.
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Que lado escolherias, se para trás não pudesses regressar?
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Quem das duas senhoras poderia te saciar a sede e amor e devoção?
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Repara mais um pouco.
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Aprende quem sou de um lado e de outro.
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Observa.
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Olha ainda.
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Não vês?
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Compreende a esfinge que te olha a espera do beijo redentor:
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Ela ainda sou eu.