para um banho depois da tarde


Banho
Ana Roxo

(uma menina toma banho numa banheira. Ao lado, uma penteadeira com um espelho)
Aberração, aberração a culpa é sua. Mergulhar a cabeça na água. Segurar a respiração até que precise da vida como precisa do ar. Ou dela.
(mergulha a cabeça na banheira, sem entrar com o corpo)
(os volumes nas calças dos moços não são para serem olhados) E cada vez que submergir a cabeça ouvir a voz ecoando que “aberração, a culpa é sua”. Precisar de ar. Da vida, do amor. (olhava os pelos que cresciam nas pernas, nos braços, no saco de seu primo. Aquele dia que ele pediu pra você pegar no pau dele, o que você sentia? “Pega no meu pau e chacoalha”) Vai, mergulha essa cabeça aí e só tira quando voltar boa. A água limpa a cabeça por fora e por dentro. Olha. Olha essa droga de cabeça, onde ela estava? “Onde estava com a cabeça?”, gritava sua mãe, e os outros diziam atrás que era você que tinha culpa, aberração. Limpar a cabeça por dentro, vai antes de tudo e lembrar quando tudo era fácil. (aí você falou que não ia pegar no pingolim dele e disse assim pingolim com medo que falar pau maculasse sua boca ainda pura) Lembrar da primeira vez que viu aquele sorriso aberto e tão franco que fez pensar se você mesma já tinha aberto tanto e sido assim tão de verdade na vida e tudo isso ali, num sorriso só.
(de frente para o espelho da penteadeira)
E a escola inteira comentando desse sorriso que tinha chegado de outra cidade, e era um sorriso tão lindo que não dava pra não ficar olhando até quando nem sorria, mas dizia coisas bobas “Oi, a gente mora perto. Vamos andando junto pra casa?” E quando percebeu o sorriso falava com você. Era com você que o sorriso queria voltar pra casa e você respondeu sorrindo também, por que era um sorriso contagiante: “Te espero na esquina(Mas seu primo tanto fez tanto fez que você pegou no pingolim dele. E chacoalhou, pra frente e pra trás, e mais rápido e tanto que quando ele falou “agora chupa meu pau”, sua boca que não tinha mancha nem de falar colocou o pau dele pra dentro só por que era a coisa normal a ser feita) E andando ao lado do sorriso, foi percebendo que logo acima dele tinha dois olhos, que olhavam tão fundo e tão dentro que aos seus olhos não deixavam outra escolha a não ser fabricar água pra se proteger da invasão. E foi tão rápido que o caminho chato da escola pra casa passou, por que eram tão bons os olhos e o sorriso, que quando a mãe deles abriu a porta e também sorrindo te convidou para almoçar, foi a coisa natural a se fazer. “É sua amiguinha?” “É”, disse o sorriso, “que bom que você está fazendo amizades”. E era uma família com muitos sorrisos abertos, e suco de limão e sobremesa, tão diferente da sua que nunca sorria ou amava ou comia sobremesa, ainda mais agora. Enfia a cabeça na água e não sai até que se limpe desse sorriso.
(volta a enfiar a cabeça na banheira, por mais tempo)
E cada vez que o ar falta, são aqueles olhos que você quer por perto. (e ainda que o resto de seu corpo resistisse, a sua boca e suas mãos continuavam chacoalhando e engolindo, por que isso é o normal e é assim que as coisas são. E o pau do seu primo na sua boca, e o cheiro do suor dele e daquele líquido branco e viscoso que agora jorrava e sujava sua roupa de ir a missa. “Engole” ele dizia, e ainda que sem querer e com nojo e querendo que aquilo não estivesse acontecendo, você segurou a respiração e engoliu, por que é assim que as mulheres são). E depois dos almoços, as tardes debaixo da árvore, onde você viu que além dos olhos, do sorriso havia um cabelo loiro, que brilhava diferente dependendo da luz que batia. E que esvoaçava, e as mãos, que arrumavam aquele cabelo. E era tudo tão novo e tão feliz, diferente dos olhos de sua mãe tristes ou dos do seu pai, submissos à tristeza da sua mãe. Não fala assim, pensa. Segura a respiração por baixo d´água e limpa a mente suja que levou você a envergonhar a todos. Que vergonha! Que vergonha!,”Que vergonha”, disse sua mãe, como se aquilo que você sentia fosse uma falta de roupa dela. (e se tivesse sido só daquela vez, mas todo domingo na casa da sua avó, enquanto os adultos tomavam café, seu primo insistia em passear. “Vai”, incentivavam os tios, e você pensava se secretamente os homens sabiam o que acontecia no bosque, que você haveria de engolir porra, que até já tinha se acostumado com o gosto, o cheiro. Acostumado, não gostado. Pensava se eles louvavam seu primo, o varão da família que submetia seu próprio sangue a vontade masculina do seu pau. Deviam comentar, por que isso é o que normalmente os homens fazem) foi numa dessas tardes embaixo da árvore que lia alto uns poemas que percebeu que aquele sorriso pertencia a uma boca e que essa boca tinha outros dizeres “Demora-te sobre minha hora/Antes de me tomar, demora” e além de dizeres, lábios que pareciam doces “Que tu me percorras, cuidadosa, etérea/ Que eu te conheça lícita, terrena”, e os dizeres entrando por seus ouvidos “Duas fortes mulheres/ Na sua dura hora” e os lábios que se moviam e ora mostravam ora escondiam os dentes “Que me tomes sem pena/Mas voluptuosa, eterna/ Como as fêmeas da Terra”. E a língua, por trás dos dentes, por trás dos lábios, por trás do sorriso “E a ti, te conhecendo” e tudo ficando tão perto e tão dentro “Que eu me faça carne/ E posse” que foi natural quando a sua boca sem sorrisos e sem dizeres quase impediu que os dizeres daquela outra boca se completassem “Como fazem os homens”, e finalizou grudando seus lábios naquele lábio que era realmente doce, por que isso parecia natural.
(corre até a banheira e enfia a cabeça e os braços)
(E num desses passeios que seu primo disse as palavras brutas e levantou sua saia, afastando sua calcinha e enfiando três dedos em você. “Eu quero comer sua menina” e esse modo de ele chamar a sua buceta, do modo que você chamava criança e pura, foi ainda mais doloroso do que a dor do pau dele entrando, por que essa outra dor física é normal, e é assim que uma mulher se torna mulher) E aqueles talvez dois segundos talvez duas horas que seus lábios grudaram nos outros lábios foram suficientes para contaminar os seus com sorrisos e doçura. E era um gosto tão diferente do que sempre sentia quando passeava com seu primo, tão doce e tão terno, que não havia por que ser ruim.
(de pé na borda da banheira, como se fosse se jogar)
Mas enfia a sua cabeça n´água e se a cabeça não bastar joga os braços e tronco, e só tira quando quiser viver sem ar, sem sorrisos e sem os beijos doces e ternos daqueles lábios. E limpa sua boca das impurezas. E sua mente daquilo que é ruim, errado, sua aberração.
(quase cai na água, desce)
Era natural que depois do beijo ficassem dois lábios felizes, mas acima dos dois lábios havia olhos apreensivos e perto dali, nos matos outros dois olhos assustados: olhos do seu primo. (E depois que o pau dele se satisfez, ele mesmo queria se satisfazer, isso é normal nos homens, de quererem se saber bons. E ele dizia que te fez mulher, e que nunca mais agora você o esqueceria, como aconteceu, e como não esquece a promessa que se fez de nunca revelar a ninguém que um dia com dor e repulsa virou mulher. E ele saiu, e você ficou ali, entre matos e sangue que escorria da sua ex-menina agora buceta de mulher) E só quando viu os olhos assustados e acusatórios de seu primo e aquela boca insípida chamando amigos, e sua mãe, foi que se deu conta (corre para frente do espelho) que o sorriso, os lábios, os dentes, olhos cabelos nariz tinham um corpo como o seu: talvez ainda menina, não mulher, mas além da mesma espécie e mesmo amor, do mesmo sexo e isso era sim errado, aberração e nunca natural como havia sido até agora.
(entra com os pés na banheira)
Limpa sua cabeça agora da dor ainda maior do que a dor de se tornar mulher, dor de viver sem os sorrisos e sem o contato da boca daquela outra. Por que perto dela você não era nem mulher nem menina, era AMOR. Vive agora talvez sem ar, sem amor, sem ela.
(deitada com os pés para fora da banheira)
E quando seu primo não se cansou de chamar todos, e todos viram e gritavam, e os sorrisos se desfizeram, e os olhos fabricavam água pra se protegerem, e as pernas queriam ganhar chão e ir pra longe, e chegou sua mãe e seu pai, sempre e agora inda mais tristes, e a mãe dela que dizia ter confiado em você, e que não eram amiguinhas por que você e aquilo e o amor eram aberração e a culpa era sua. E seu primo gritava, e você gostaria de revelar que não, que você era normal sim como toda mulher por que já tinha sentido o pau dele dentro da sua buceta-menina, mas não disse, por que havia jurado ser mulher só para si. Vai. Limpa sua mente, e sua boca, e seu amor. E limpa seu corpo e seu sexo que é impuro por que de nada serviu ser normal e mulher por que sua mente é aberração. Vai mergulha na água também seus olhos, e cabeça, (deita na banheira com os pés para fora. Fica um tempo. emerge) tronco e membros, (deita, fica mais tempo. emerge) e só retorna quando for mulher, normal como as mulheres e não somente AMOR.
(olha para o público, um a um. Sorri. Entra completamente dentro da banheira. Afoga-se)

Campinas, em 13 de maio de 2005.

Pólen

Cássio Pires


Um garoto de 16 anos, numa banheira. Volta e meia, usa um escovão para as costas. Na beirada da banheira estão alguns dardos e um velho aparelho de telefone.


GAROTO - É assim! (joga um dardo) As meninas jogam! É assim! Você tem que aprender isso. Você tem que repetir isso todos os dias da sua vida, que nem um pai nosso. “As meninas jogam! É da natureza das meninas!”. O Reinaldo que tem vinte e é esperto sempre diz isso. O Alceu, que tem quarenta, sempre diz isso. E você achando que eles eram idiotas e que com você ia ser diferente. Olha aí, “diferente”... Ela é sua prima, olha só que coisa boa! E ela não fodeu você pra ficar com outro cara. Ela fodeu você pra ficar com uma menina! Viu? Você tava certo, idiota, com você ia ser diferente. (soca a água) Como é que pode, meu Deus? E porque comigo, meu Deus do Céu? (joga um dardo) Responde! (joga outro. Respira, baixa o tom). Eu não vou conseguir esquecer daquela puta beijando aquela menina no meio da floresta. Nunca! Agora eu vou ter que agüentar a minha mãe, a Tia Paula, a Luiza, todo mundo me olhando com cara de coitado até a minha morte. Eu vou ter oitenta anos e elas vão ter duzentos anos, vão ficar paralíticas e cegas e ainda assim vão me olhar com cara de coitado.

(Mergulha, emerge)

Eu devo ser um coitado mesmo. (joga um dardo, erra feio) Devo ser...

(Mergulha, emerge. Pega o telefone, disca. Ninguém responde. Bate o gancho)

É tão bom quando não tem menina por perto. É tão melhor ir lá na comunidade fazer trabalho social. (joga um dardo) Por que é que a vida não é só trabalho social?

(Mergulha, emerge)

É tudo muito calculado. Tudo muito pensado. Ela tem quinze anos, mas mulher não tem idade. Quando é criança, é burra. Quando é velha, é burra, é chata e é velha. Mas quando é mulher, depois que menstrua, aí não tem idade. Menstruou, vira um gênio. Ela vem, fica olhando pra você e fica ali, só olhando. E você fingindo que não tá vendo nada. Mas é só você dar uma de canto de olho e ela tá lá, olhando pros seus olhos, olhando pro seu cabelo, olhando suas pernas, olhando pro seu pau. Só olhando. Um tempão. Depois começa a te provocar. Teu cabelo é feio, você tá com espinha na dobra do nariz, você tá com rufa no pescoço. E se fosse só falar, vá lá... mas não, fica rindo... Toda vez esse jogo: uma olhadinha, uma provocada, uma risinho... O Reinaldo sempre fala isso: mulher, na sua frente, não ri de você. Ri pra você. Mulher ri de você pelas costas. O Reinaldo não é idiota. O Reinaldo sabe das coisas. Eu sou um idiota. Eu sou um corno. O corno da floresta!

(Joga um dardo. Mergulha, emerge)

Tudo muito calculado. E quando você vê, já tá dando em cima dela. Já tá o dia inteiro pensando no que vai dizer pra ela e fica o dia inteiro ensaiando sua posição na mesa e pensando um jeito da Tia Paula não perceber nada. E você esquece o trabalho social e fica pensando na sua prima. Aí um dia, tchum, quando você se dá conta, você está vendo só a parte de cima da cabeça da sua prima e ela está lá, com a boca no seu pinto, bebendo sua porra como se fosse leite de cabra. Tudo muito calculado. Aí ela vai embora e você fica louco. Você fica totalmente louco e fica procurando sua prima até que você consiga arrancar a virgindade dela. E na hora parece muito mais gostoso que o trabalho social, mas, quando você acorda, você vê que é tudo mentira. Mas na hora, não. Na hora você fica com vontade de enfiar o pau na buceta, nos peitos, na orelha, na boca, no fígado, no cu. Até no cu, que é uma coisa que fede, você fica com vontade de enfiar o seu pau.

(relaxa o corpo, joga um dardo sem vontade de acertar)

Você fica querendo enfiar o pau em todos os buracos da pessoa pra ver se ela te aceita. É por isso sim. Na hora ela faz que te aceita, dá todos os buracos, mas aí ela vai embora e depois você descobre que ela não te aceita. Que mesmo você tenha um pinto pra cada poro do corpo dela, ela nunca vai te aceitar. Elas nunca vão ser suas. É da natureza das meninas. Tudo muito calculado.

(Pega o telefone, disca. Ninguém responde. Bate o gancho. Grita olhando para o aparelho)

Você tem que entender que tem uma dívida de gratidão comigo. Fui EU que estourei seu cabaço! Você vai morrer com isso na memória, nem se você cair da escada e bater a cabeça em trezentos degraus e perder metade dos miolos você não vai conseguir se esquecer disso, nem se você ficar doente e perder a memória e acordar achando que seu nome é João você vai se esquecer disso, nem se você casar com essa menina que você beijou e tiver cinco filhos com ela você vai se esquecer disso! E quando você for uma velha gagá e tiver um único neurônio bom ele vai servir apenas pra te lembrar disso. Eu sou a única coisa que você não vai esquecer de jeito de nenhum e você tem que me aceitar, sapatão pervertida! VOCÊ TEM QUE ME ACEITAR E TEM QUE ACEITAR QUE VOCÊ É UMA MENINA E QUE VOCÊ FEZ UMA COISA MUITO ERRADA! Portanto, atenda esse telefone!

(Pega o telefone, disca. Ninguém responde. Atira um dardo. Mergulha, emerge)

A vida é muito chata quando tem meninas perto. As pessoas ficam falando de Deus, que ele é perfeito, mas ele não entende nada. Ou entende tudo e por isso que não se mete com mulheres e fica rindo do mortal aqui. O trabalho social, sim. O trabalho na comunidade é o que vale no final das contas. E trabalho social só existe porque Deus é mal.

(joga um dardo. Mergulha, emerge)

Tudo isso porque porra é líquida. Deus é um bicho ruim, sim! Fez a porra líquida pras pessoas terem que se aproximar. Se Deus fosse do bem, ele faria com que a porra fosse um pó. Aí você nunca precisaria enfiar seu pau nas meninas e ninguém ia precisar de ninguém! Quando desse vontade, numa noite de brisa, você bateria uma punheta e puff! Sairia o pó pelo buraco do seu pinto. Se alguma mulher quiser engravidar, basta abrir a janela, botar uma saia e sentar de perna aberta enquanto assiste a novela. Tranqüila. Sem jogo, sem calculo, sem querer saber quem é o pai. A brisa se encarrega de tudo. Obra do acaso. Do jeito que é com as flores, que são mais felizes que nós. Se as flores precisassem se comer, elas seriam feias e tristes, como as pessoas. O pó resolveria tudo. A porra em pó sai pela janela da sua casa, entra pela janela da casa da menina e fertiliza a desconhecida enquanto ela assiste sua novela. Perfeito. Assim ninguém precisa de ninguém e mesmo assim a humanidade não corre risco de extinção. Deus deve ter pensado nisso. Não fez por que não quis.

(Joga um dardo. Mergulha, emerge. Fica submerso por um tempo)

O pior é que eu tenho dezesseis anos. O pior é que eu vou querer esporrar em mais monte de meninas e depois em mais um monte de mulheres e depois vou ficar velho e burro e chato e que nem seu Agenor que fica cantando as meninas e achando que elas vão dar pra ele. Ou então eu vou ficar igual o Alceu e casar com uma mulher feia e vou passar o resto da vida esporrando só nela e em mais ninguém. E o pior é que eu queria que essa mulher-pro-resto-da-minha-vida fosse minha prima. E o pior é que ela deu pra mim e foi na floresta virar sapatão. O pior é que eu nunca vou gozar pó e eu nunca vou ser uma planta que lança esperma no ar.

(joga um dardo, pega o telefone, suspira)

O pior é que tá só começando.

FIM

Em São Paulo, 19 de maio de 2005
* HILST,Hilda.Da morte. Odes mínimas.II,São Paulo: Ed. Globo, 2003.

2 comentários:

Lola disse...

Moça, é muito bom poder conhecer esses seus trabalhos aqui no blog!

Bruna Bites disse...

Pude acompanhar a leitura desse texto na Livraria da Vila outro dia. E eu adorei, tanto conhecer esse, como a oportunidade de ler os outros que estão por aqui.