enfim

(lente de aumento sobre um não)

CENA 1

Música alta, câmera lenta. Ela lê um livro, ele entra andando numa bicicleta de menina, com cestinha na frente, cheia de flores. Os dois distraídos. Ele atropela ela. Todas as flores caem em cima dela. Assustado, tira o fone de ouvido. a música para.

ELA
Você está louco?

ELE
 (assustado)
Machucou?

ELA
Não presta atenção, não?

ELE
Desculpa, estava distraído, ouvindo música.

ELA
 (muito brava)
Vai à merda. Você e sua merda de música (sentindo a perna) Ai!

ELE
Machucou? Deixa eu ver.

ELA
(empurrando ele)
Sai daqui, seu puto! (ele ri, ela fica mais puta ainda) 
Do que você está rindo, seu filha da puta?
(continua falando baixo) Me atropela e fica rindo da minha cara, caralho.

ELE
É que é engraçado, você tão linda, no meio de um monte de flor, falando tanto palavrão.

ELA
E eu vou falar bem mais se você não sumir da minha frente (sentindo a perna de novo) Ai, ai...

ELE
(pegando ela no colo)
Eu vou te ajudar
(ela não deixa, começa a bater nele)
Não adianta, eu vou te ajudar

ELA
Não dá pra você me carregar!
Me põe na bicicleta!

ELE
Não dá, ela não tem garupa. Deixa aí depois eu pego...

Sai, deixa ela fora de cena. Volta pra pegar a bicicleta. Muda de tom.

ELE
(pra ela, que está fora de cena)
Na verdade não foi assim.

ELA

(de fora de cena)
Mas é sempre assim que eu gosto de lembrar.

ELE
É assim que você sempre conta. Mas não tinha essas flores.


ELA
(ainda de fora)
Mas assim é mais bonito.

Transição. Mudança de luz.

ELA
Eu queria conhecer meu o amor como num filme.





CENA 2 - POEMA PARA O AMOR FUTURO
---
eu ainda não quero saber como vou te conhecer
ainda não

talvez até eu já te conheça
e só não saiba
que você é meu amor futuro
mas se eu puder escolher

eu prefiro que você chegue no inverno

para que eu gaste mais tempo tirando sua roupa
para que eu tente ver sua nuca por entre o cachecol
para que seu perfume dure mais no meu corpo

para que você queira dormir de conchinha comigo
para eu poder esquentar seus pés gelados
para que a intimidade venha aos poucos e reconhecível
para que você não enjoe rápido da minha pisada torta
ou de como eu reclamo do caimento das saias.

eu posso gostar da sua voz primeiro

do jeito que você pega num livro

eu posso gostar primeiro da sua mão

ou de um jeito de sorrir meio de lado

do jeito que você arruma o talher antes de comer
das coisas que você lê
(será que você vai gostar de Hilda?)

você pode ser bonito,

você pode ser linda.

mas isso não precisa ser a primeira coisa
eu prefiro te achar bonito aos poucos
por essas pequenas coisas
que eu vou descobrir cada dia um pouquinho
ao longos dos anos que vamos passar juntos
eu e você

eu quero passar várias noites em claro conhecendo o seu corpo

seu jeito de se mexer
de me pedir água e depois de espreguiçar
e jogar o corpo em mim

de reclamar que eu me espalho na cama

como se fosse tudo tão novo, de novo

mesmo que eu já tenha visto de tudo:

como se eu e você tivéssemos acabado de nascer
e estivéssemos inaugurando as tradições.
quero vários dias conversando com a mesa ainda posta
e muitas férias sem rumo
de bicicleta pela Europa

pela orla Copacabana ou pelo Minhocão:
porque vai me importar menos a paisagem
do que estar na sua companhia.

(será que você vai de bicicleta? Ou de patins?)

então eu espero que você ache isso bom.

quero te mostrar o parque da minha infância

onde eu caí e fiz essa cicatriz

as ruínas da minha antiga escola,

a casa onde nasci,
o banco que dei o primeiro beijo
os meus lugares santificados,
e quero conhecer os seus
como um jeito de te conhecer
conhecer seus recortes, seus trajetos, seus horários.

eu quero fazer programas furados com você

só pra depois poder rir
de como a gente não percebeu
que ia ser um programa furado

num dos cafés da manhã eternos
que vamos tomar juntos.

eu sei que você vai gostar
(você tem que gostar)

de esperar o almoço na cozinha
conversando comigo.
seria muito bom que você cantasse pra mim

enquanto eu cozinho seu prato preferido

(que vai mudar de tempos em tempos)

ou que tocasse um instrumento
ou colocasse música e dançasse pra mim
eu quero que você fique de mau humor às vezes

(porque eu fico bastante de mau humor)

aí eu vou poder inventar truques pra melhorar seu humor:
fazer malabarismos pra você rir quando eu deixar cair tudo no chão

imitar aquela sua tia engraçada que conheci no natal
com a sua família

fazer uma dancinha como o pato donald e a margarida
ou ula-ula com o espanador

tirar o som da tv e dublar as falas da kate e do jim
no filme que a gente adora

pra você rir de tudo e eu poder dizer: isso também vai passar
enquanto te faço cafuné deitada no edredon cheio de mini travesseiros

(porque você vai gostar dos meus travesseirinhos)

porque sabemos que tudo vai passar mesmo

até nós dois

(mas isso eu não quero pensar agora)

e você sempre rirá dos meus gracejos

e do meu jeito estabanado de deixar as coisas bem de novo
com uma piada boba e uma voltinha

e nunca vai se irritar por coisas que não merecem atenção

as contas a pagar, o óleo do carro, a faxineira que não veio, o aumento do gás

serão coisas menores: do tamanho que elas tem, de cotidiano.
e vai ter um jeito só seu

(que eu ainda não sei, porque é só seu)

de me fazer rir de mim mesmo,
quando eu não estiver conseguindo.

eu quero te mostrar como o sol bate oblíquo
nas manhãs azuladas de outono

de como ele entra e lambe a parede do meu quarto
por entre a veneziana

e ilumina o beijo do klimt

(eu sei que você vai amar o sol)

e quero que você me mostre aquela foto da sua adolescência
que você esconde de todo mundo,

aquela com corte de cabelo de gosto duvidoso e ombreiras

eu quero dizer eu te amo de muitas maneiras
até das maneiras óbvias, assim: eu te amo
e das menos óbvias,
como lavar a sua louça no frio
ou regar as suas plantas

ou deixar post-its pela casa com fragmentos de poesia

ou levar seu cachorro pra passear e chamar ele de "filho"
(será que você vai ter cachorro? ou gato? ou os dois, como eu?)

e você vai aceitar meu amor eterno,
leal, compassível, entregue:
como um rio

pequeno em sua nascente que se avoluma,
molda paisagens e se lança ao mar serenamente.
eu sempre vou levantar antes de você

(eu sempre levanto antes de todo mundo)

fazer um café e trazer na cama,
(
será que você vai gostar de café tanto quanto eu?)
depois de te deixar dormir mais um pouquinho
e ficar observando como você dorme bonitinho.

eu vou gostar do cheiro do seu pescoço ao acordar
e você vai querer acordar comigo todos os dias.
talvez eu leia e você prefira ver tevê
ou então eu vejo aquele programa sobre o santo sudário com você
sabe? aquele programa que só eu e você gostamos de ver

eu vou te contar minhas virtudes,

mas os defeitos você mesma vai perceber,
porque eu não sou bom nessa parte de fingir

e eu vou conhecer cada mania boba que você tem
e umas coisas que vão me irritar

mas depois de um tempo

eu e você vamos nos amar por causa dessas coisas
e não mais apesar delas.
eu vou te mostrar todo dia as suas virtudes

eu vou te fazer um elogio por dia

(e nunca vai faltar palavra pra te elogiar)
mesmo que seja só:
a luz do jeito que bate no teu cabelo faz um reflexo lindo
ou

gosto quando você começa a sorrir primeiro com os olhos
ou
aquela música que você colocou ontem foi como um cafuné
ou
fiz seu prato preferido, amor.

será que você virá inesperadamente?

num dia em que tudo deu errado, e eu te encontro de repente?
será que você virá num dia pacato?

será que eu vou saber que é você na hora?

ou vou perceber como passar dos dias?

será que você vai gostar de discutir azulejos?
e a posição do sofá?
dos meus desenhos pelas paredes?

da lista de músicas que eu fiz pra te mostrar
enquanto espero você chegar?

eu nunca vou querer que você me salve de nada
(nem da falta que você já me faz antes mesmo de chegar)
porque agora eu não tenho mais medo

não tenho medo nem de que você não venha.


CENA 3
Depois do filme, puxam aplausos. Ela sobe no palco e começa a agradecer

ELA

Oi gente, muito obrigada pela presença de todos. Queria dizer que foi um prazer pra mim fazer esse filme e é muito emocionante ver ele pronto. Quero agradecer a equipe toda, e dizer que foi um prazer trabalhar com vocês. E queria fazer um agradecimento especial ao meu companheiro de cena. Não é sempre que a gente pode trabalhar com amigos de tanto tempo e tão queridos. Vem aqui, falar alguma coisa.

ELE

(sobe no palco e dá um abraço nela. Vai no microfone)

Bom, como ela disse, foi um prazer mesmo. A gente se conhece há muito tempo, então, rolou super legal a química, foi um prazer. E taí, nosso filme. Espero que todo mundo goste tanto quanto a gente gostou de fazer.
(falando com alguém no fundo da platéia)
Agora a gente vai ter um coquetel, É isso? No hall? Legal, então, gente, boca livre ali fora!
Mudança de luz, como se fosse uma luz de serviço. Talvez som de gente saindo, comentando. Ela pega as coisas e vai saindo. Ele chama

ELE
Como assim..? Você não vai ficar pro coquetel?

ELA
Não, eu marquei de encontrar umas amigas...

ELE
Amigas? Ah, que isso, é nosso filme, fica aí.

ELA
Sua namorada não vem?

ELE
Não, ela tá em SP.

ELA
Ah, que pena...

ELE
Você acha?

ELA
Acho. Não é?

ELE
Não. Na verdade, não. (um pouco sem graça)
Sei lá. Esse filme mexeu um pouco comigo. Já mexeu quando tava gravando, mas a gente nem se viu muito, né?

ELA
É, foram dias diferentes.

ELE
Mas depois de montado, hoje, vendo... Você já tinha visto?

ELA
Não...

ELE
Você não achou... quer dizer. O que você achou?

ELA
Ah, eu acho que as locações estão super legais, você tá super bem... Tem uma coisa ou outra que eu tiraria, mas...

ELE
Não é isso que eu to falando, mas, não sei. Deixa pra lá. (ela olha com doçura) É que no filme parece que você tá falando essas coisas pra mim. E que eu to falando pra você. E mexeu comigo isso.

ELA
(mais sem graça)
Mexeu? Como assim?

ELE
Não sei. Não consigo deixar de pensar em você.

ELA
Nossa, mas a gente se conhece há tanto tempo...

ELE
Pois é... louco, né? Eu fiquei pensando um monte de coisas, um monte de bobagem, acho.

(tempo) 

ELE
O texto fala: talvez até eu já te conheça e só não saquei... que você é meu amor futuro

ELA
“Só não saiba”

ELE
Como?


ELA
O texto é "talvez eu até já te conheça e só não saiba que você é meu amor futuro"
(se olham um tempo)

ELE
É.
(toca o celular dela) Não atende...


Ela atende, ele continua falando, ela faz um sinal com a mão pra ele esperar. Ele continua falando.

ELE
Eu viajei na idéia de que esse texto era meio eu e você.

ELA
(no telefone quase simultâneo)
Oi. Não, to saindo daqui a pouco. Tá. Não, me espera que eu to indo.

ELE
Como se naquele dia da bicicleta a gente já tivesse predestinado.

ELA
(desliga o tel)
Eu preciso ir. Me liga? (sai)

ELE
(fica olhando um tempo) Mas agora é tarde, talvez. E, se eu pudesse, eu queria ter te conhecido bem depois. E então eu te re-conheceria.

(música. b.o.)



CENA 4

Num parque. Ele e ela andam. Um muro cinza e descascado, uma rua. Um monte lixo ao lado.

ELA
Você me trouxe aqui já. Eu me lembro.

ELE
Não.

ELA
Trouxe sim. No dia da festa da Amandinha. Tava um puta frio.

ELE
Não. Eu não fui nessa festa.

ELA
Claro que foi. A Amanda até tava dando em cima de você.

ELE
Não fui. Tenho certeza. Eu costumo saber onde fui e onde não fui.

ELA
Por que você me trouxe aqui?

ELE
Pra ter uma lembrança. Uma memória. De primeiro encontro.

ELA
Mas esse não é nosso primeiro encontro.

ELE
Não faz mal. Vamos fazer como se fosse.

ELA
Pra que?

ELE
Quando a gente tiver 40 anos vamos poder lembrar.

ELA
Mas eu gosto de lembrar da história da bicicleta.

ELE
É uma história boba.

Ele para de andar. No muro, nesta parte, um grafite bem realista de uma ponte, com rio embaixo, a lua e seu reflexo na água. Isso pode ser uma projeção de vídeo sobre o muro, sobre eles.

ELE
Aqui.

ELA
Que que tem?

ELE
Vamos parar aqui. Tem uma ponte. Uma lua refletida na água. Estrelas.

ELA
É um desenho. Não é real.


ELE
Mas é isso que eu quero guardar na minha memória fabricada. Aqui, assim, eu posso colocar a mão nas suas costas.
(ele não executa os gestos)
Abrir seu casaco.

(ela não está de casaco)
Colocar minha boca no seu pescoço e devagar te beijar. Minha mão gelada nas suas costas. Ai você vai poder descansar sua cabeça no meu ombro.

ELA
Aqui só tem um monte de lixo. E um muro, com uma pintura descascada.

ELE
A poesia é a lembrança desse momento. Não o momento. Não dá pra ver poesia no presente.

ELA
Naquele dia, na festa da Amandinha, eu achei poético. Era uma festa a fantasia. Você tava vestido de cupido. Eu não tinha fantasia, tava só com uma asa de borboleta. Você se lembra.

ELE
Eu não fui nessa festa.

Tempo. Eles continuam olhando para frente.

ELE
(fabricando uma lembrança)
Aqui, essa lua, esse rio. Eu com as mãos na suas costas. Sua cabeça em meu ombro.

Ela olha devagar. Abre um guarda-chuva. Coloca a cabeça no ombro dele. Uma imagem.


ELA
Eu pensei em falar com você na festa. Tão lindo. De cupido. Eu lembrei daquela história do cupido. Então eu me aproximei de você e falei: Eros? Você se virou devagar. Você entendeu minha cantada, você entrou no jogo. Eu achei você tão inteligente... Disse: Psiquê?

ELE
No dia da festa da Amanda eu fiz outra coisa. Encontrei com outra pessoa. Como era o nome dela?

Tempo. Ela absorta em pensamentos.

ELE
Natasha.

ELA
(entretida em suas memórias)
Oi?

ELE
Natasha. O nome dela era Natasha.

ELA
Não conheço.
(mudando de assunto)
Era você, eu sei. Achei você tão esperto. Pegou na minha mão, delicado. Eu senti sua mão na minha.

ELE
Eu pego agora sua mão, quer? Eu seguro. Então, segurando a sua mão, eu falo: "Eu quero ficar com você pra sempre. Te amar pra sempre. Cuidar de você."

ELA
Aí você falou, falou coisas doces e belas e bobas. Eu ri. Eu achei você tão lindo. A gente foi embora, veio aqui. Esse muro, esse lixo do lado. Andamos muito.

ELE
Nós andamos muito hoje. Essa lua tão alta. Você ouviu? Eu quero ficar do seu lado. Pra sempre.

ELA
Você está do meu lado. (tempo) Eu to com medo de ficar aqui. Vamos embora?

ELE
Não podemos.

ELA
Por que?

ELE
Estamos fabricando nossas lembranças. (tempo) Você ouviu o que eu disse?

ELA
Ouvi.

ELE
Essa parte do pra sempre, ouviu? "Eu quero ficar com você pra sempre".

ELA
Ouvi.

Tempo. Ela olha em volta.

ELE
Você vai se lembrar?

ELA
(ao mesmo tempo que ele)
Aqui. Nesse muro descascado. Faz frio.

ELE
(ao mesmo tempo que ela)
Aqui. Uma lua na ponte. Barulho de água.

Pega na mão dela.

ELE
(ao mesmo tempo)
Pra sempre.

ELA
(ao mesmo tempo)
Uma lembrança.



CENA 5
Uma festa a fantasia. Luzes coloridas. Alto teor etílico. Ela está num canto, um pouco emburrada, sem fantasia, mas num lindo vestido branco. Tem uma tiara na cabeça. Ele está vestido de anjo, com uma fralda, asas e uma auréola que pisca colorido. Ele se aproxima dela.

ELE
Oi. Tudo bem?

ELA
Tudo.

ELE
Como é seu nome?

ELA
(mente)
Natasha.

ELE
Aposto como você não adivinha do que eu to fantasiado.

ELA
Você vai ganhar essa aposta. Por que eu não vou adivinhar mesmo. Não vou nem tentar.

Ele ignora a grosseria. Faz "pose de Eros"

ELE
Tenta. Repara só.
(tempo)
De Eros.
(tempo)
Cupido, sabe?

ELA
Sei. Sei tão bem que eu posso te assegurar que você não é o Eros. Ele tem arco e flecha, é lindo e é irresistivel.

ELE
(sem perder o humor)
Bom, então, só falta o arco e a flecha.

Procura pela sala. Acha um berimbau.

ELE
Pronto. Que tal? Eu Eros e você Psique.
(fala com a sílaba tônica errada)

Faz pose de arco e flecha com berimbau e baqueta.

ELA
(corrigindo)
Psiquê e não psique. E Eros não tem auréola. Você não passa de um anjo decaído, segurando um berimbau quebrado.

ELE

m anjo caído de amor. Um cupido-picado por sua  própria flecha ao ver Psiquê. Uma princesa.

Tira a auréola, e coloca-a invertida na cabeça dela. Ela está muito arredia.

ELE
E dessa auréola, faço uma coroa. (ajoelha-se) Psiquê?

Ela o encara. Cara fechada.
ELA
Psiquê não pode ver Eros. E quando o vê, queima ele com óleo quente. Essa cantada ta toda errada.

Ele começa a tocar o berimbau, gingando.

ELE
A gente ta reescrevendo o mito, nossa história. Eu sou um Eros brasileiro: ao invés de flecha, ginga. Aprendendo a abrir, sem flechas, um coração cansado.

ELA
(entrando no jogo, cedendo)
Como você sabe, cupido tupiniquim, que meu coração está cansado?

ELE
As ninfas me contaram, quando me disseram que aqui vivia uma irmã perdida de Afrodite.

ELA

Eu? Irmã de deusas, deus?

ELE
Irmã de deusas, talvez destinada a ser uma delas, desposando Eros com suas flechas douradas.
(Estica a mão pra ela.) Vem?

Ela, arredia, tira a coroa. Quebra o jogo.

ELA
(noutro tom)
Por que você tá fazendo isso?

ELE
Isso o que, Psiquê?

ELA
Para com isso, o que que você quer? Eu estou aqui quieta.

ELE
Eu quero recomeçar. Reescrever. E você podia brincar só um pouco disso.

ELA
Recomeçar?

ELE
É. Ou começar, simplesmente. Ou brincar simplesmente. Ou simplesmente simples. Uma vez. Simples assim.

ELA
Eu queria, Eros. Eu queria que você voasse mesmo e me levasse daqui. Mas eu não posso, anjo caído. Sou prometida a um titã. (aponta uma pessoa fora de cena) Tá vendo aquele moço de casaco ali parado? É meu namorado.

Ele olha pro lado que ela apontou.

ELE
Deixa ele vem comigo. Eu não tenho asas, mas minha bicicleta tem garupa com almofadinha. Dá pra sentir o vento assoprando a cara quando desce ladeira. Vem?

ELA
(ri do gracejo dele)
Você colocou uma garupa?

ELE
Pra te levar.

ELA
Mas eu não posso. Eu quero e não quero e não posso. Eu não sei o que quero e enquanto não souber, não me mexo. Eu amo aquele titã de casaco, e tenho um monte de coisas que sei que tenho que viver com ele. E amo esse Eros decaído, e viveria com o vento soprando na cara, montada na garupa da sua bicicleta de menina.

ELE
(ficando muito triste e resignado)
E o que EU faço agora?

Tempo. Muda luz. Outro tempo, quebra a cena.

ELA
Me espera. Ou me enterra. Morta de amor, depois de receber essa sua flecha no meio peito.
(pega na mão dele)
Às vezes tudo é questão de quem a gente conheceu primeiro.



CENA 6 - POEMA PARA O IMPOSSÍVEL

ELE
Por que foge de mim
Céu - Desejo?

ELA
Impossível: penso recompor teu corpo
Na parca memória respeitosa
Dos meus grandes olhos devassos
(Controlados. Descompostos. Descompasso.)

ELE
Sempre me lembro primeiro dos seus cabelos cobrindo seu pescoço e de como desejei tirá-los dali para que, então, coubesse minha boca. Penso em como minha mão se encaixaria nas suas costas e de como seria fácil trazer seu corpo junto ao meu, quando elas lá estivessem. E meus lábios na sua orelha.

ELA
Inevitavelmente penso no seu cheiro. Aqui, na sua nuca. Fresco, como um amanhecer, após banho. E quando penso no seu cheiro pós banho, sempre me envergonho, porque então penso em como seria a água escorrendo pelo seu corpo. No seu corpo, sem roupa, aberto reluzente onde poderia, sendo meu, pousar meus olhos. Esses mesmos que agora fugiriam dos seus olhos, se eu pensar que um dia você descobriria o quanto te desejo (te desejo ainda, ou te desejaria a partir de agora, ou num tempo que não sei conjugar: pretérito do subjuntivo mais que perfeito).

ELE
E então a sua boca. Eu poderia aqui dizer, romântico, simpático, delicado, que penso no seu sorriso, no jeito que você mexe quando ri, e como eu me perco, sem que você saiba, no seu sorriso. E eu penso mesmo no seu sorriso. Mas se eu tiver que ser sincero, eu tenho que dizer que me pego pensando na temperatura, no gosto e no paladar da tua boca. No seu beijo. De como seria encostar a minha boca na sua. Eu fecho os olhos e é então, como se um dia ainda tivesse acontecido nesse tempo passado conjugado no meu desejo. No impossível do tempo, do seu tempo, meu tempo, seu beijo, seus encaixes.

ELA
E quando penso em encaixe, inevitavelmente penso em sexo. E aí, como estou pensando nisso mesmo, deixo o pensamento-desejo correr junto a água do seu corpo, junto do meu corpo e então não é mais pensamento, é desejo e corpo e vertigem sem ar e sem tempo. Esse tempo, ilusão da matéria. E é o encaixe do seu corpo, impossível ao meu toque nessa vida desse jeito agora, essa vida ilusão que deu de ser assim: o que mais me intriga e revela, o que traz a dureza do não vivido (ainda ou nunca ou sempre ou quando?).

ELE
E abro os olhos e você não está. Ou não é você, não é ainda você, ou você já se foi da minha vida. E algo me protege da fuga. E algo te revela numa metáfora. Numa procura. Num sonho. Numa impossibilidade-desejo. Em outra mulher, numa lua. Numa possibilidade remota. Nessa bolha sonho que ninguém, nem você mesmo, tem direito de me tomar.



CENA 7

Num bar. Noite. Os dois conversam, animadamente.

ELA

... mudos, completamente mudos. Tipo sem nem perguntar o nome, mais uma delícia. Carnaval, eu quero lá saber do que? Aí ele me comendo animal, olhou pra mim e falou: vai, que quero que você goza!

Os dois riem muito.

ELA
 Não dá. Fica quieto e me come, meu bem. Erro de português no meio da trepada não dá.

ELE
Eu formulei uma teoria, que chamo de teoria do script. É assim: tem um script a ser seguido em diálogo de casal que é absolutamente óbvio. Só não segue quem é besta. Por exemplo: Reveillon, Copacabana. Você, de branco, sua mulher, namorada sei lá, de branco também. Fez sol o dia todo, vocês dois corpos meio dourados, quase ardendo, sensibilidade total ao toque. 10, 9, 8, feliz ano novo. Fogos de Copacabana. Vocês se beijam. Ela diz: Vamos ficar juntos para sempre? O que você responde? SIM, MEU AMOR. Você não responde que pra sempre é um pacto forte demais, que isso pode acarretar sei lá o que, nem que "pra sempre sempre acaba", você não diz que tava olhando a loira que passou agora pouco, nem que o ano passado você teve uma amante que te tirou do sério mesmo e você pensou em separar. Desculpa, não é hora da verdade, meu caro. Caramba, você sabe que pra sempre é tempo demais, mas olha: Reveillon, Copacabana, fogos, corpos dourados. "Fica comigo pra sempre?" "Sim, meu amor."

ELA
(à queima roupa)
Fica comigo pra sempre?


Eles se olham um tempo. Caem na risada.
ELE
 (ainda rindo)
Acho que está tarde, eu preciso ir buscar a Amanda.

ELA
(um pouco mais séria)
Espera o por-do-sol.

ELE
Mas são dez da noite.

ELA
Então.

Eles ficam parados.



CENA 8
No mesmo muro, mais descascado, com a mesma lua e ponte e rio.

ELE
Numa noite chuvosa, com uma improvável agigantada lua se pondo num horizonte inventado, Mariane Oknawa, 27 anos, passeia com seu indefectível vestuário atemporal, saia de pregas de patético comprimento démodé, camisa branca de linho sem vincos, seu chapéu revelando a ponta de um cabelo chanel que o tempo e a moda já cobriram de acasos. Na mão direita, onde ostenta um invertido relógio de pulso (a corda, nunca a bateria) carrega também uma sombrinha preta, que daqui vejo tão grande como a lua agigantada daquele inventado céu com moldura de chorões que derramam suas lágrimas folhas no leito de um rio que ela olha de cima de uma pitoresca ponte de paisagem francesa. Mariane Oknawa, chinesa por parte de avô não tem traços nem manias nem chistes orientais além do pensamento num movimento lento de filme coreano, perde-se numa lembrança triste (mas de final feliz) sobre outra mulher que também chora na ponte como os chorões emoldurando a lua no rio e como Mariane ao lembrar o pensamento nela:

ELA
Sempre que aqui venho lembro-me de Natasha Finnegans que, numa noite quente de verão, em que se podia sair em mangas de camisa, decotes de princesa, resolveu sair de casa para tomar a fresca e, naquela quente noite, deparou-se consigo mesma; espectral imagem refletida na água, outras águas deste mesmo rio.
Embevecida por sua própria imagem, olhando firmemente seu branco colo espectral neste mesmo rio (outras águas), foi abrindo a camisa de tafetá azul para que pudesse olhar seu colo, olhar direito seu colo. Tonta, torpe, sozinha na quente noite deste mesmo rio (as águas não, eram outras), Natasha Finnegans despiu seu torso que era fantasmagórico como a lua refletida nos seus olhos de rio-mar-onda de outras águas cintilantes. Natasha Finnegans de olhos de lua fantasmagórica, torso nu na quente noite de outras águas deste rio deixou jorrar de seus olhos lágrimas igualmente quente e cintilantes. Outras lágrimas, não essas que agora caem no rio. Foi quanto essa lágrima caiu no rio que o rio estremeceu e congelou. Natasha Finnegans, de outras lágrimas de outros olhos deste mesmo rio também enregelou e, devagar, pisou a fina camada de águas em pedra do rio recém congelado e, naquele momento, naquele preciso momento de pé-água- pedra-gelo torso nu da quente noite de outras águas deste mesmo rio foi que Natasha Finnegans, 35 anos, percebeu que não haveria pra ela mais amores nem dores nem suores no meio das noites, nem uivares nem pomares, nem Palmares, e levantando os olhos ao céu pediu a lua, Nossa Senhora Santa Clara, quebre esse gelo e permita, senhora, que também meu rio olhos lágrima de outros corações possa também amar aos outros como tu a mim e eu a ti. Naquela quente noite, torso nu, gelo, rio-pé-espectro de Natasha, a fina camada se rompeu e a moça, ainda sem entender nada, caiu em pranto e no leito da cama rio. Seu corpo com improvável saia rodada aberta nas águas flutuava, inconsciente, ofélica. No seu peito, a lua refletida, sua cabeça nada. Três kilometros rio de outras águas abaixo, flutuando inconsciente, bêbada de lua e da quente noite, Natasha Finnegans, 35 anos foi resgatada por Luis Carlos Cunha do Amaral, contador, que passava ao luar de uma quente noite solitária como nunca mais houve em sua vida.




CENA 9

ELE
Essa foi a peça que eu fiz pra te esquecer. 
Nela eu deixo: ponte, estrela, luar e as memórias que eu fabriquei para quando formos velhinhos eu compartilhar com você.

ELA
No dia em que eu te esquecer não fará sol. Mas eu vou perceber que algo novo, algo leve, me aconteceu ou está pra acontecer.

ELE
Eu deixo nela: guarda chuva, bicicleta, flor. Barulho de chuva no rio. Deixo uma risada de lado que você deu no primeiro dia que eu vi você.

ELA
No dia em que eu te esquecer, eu vou tomar muito café. Por que vou poder tomar café sem pensar, que café me lembra você. E vou poder comer bala, sem nunca pensar naquele dia anos atrás, que bala começou a me lembrar você.

ELE
Deixo aqui ainda: muro, lixo e medo e os todos os meus defeitos, que apesar de eu tentar esconder, você logo descobriu e hoje eu penso, se esse não foi o porquê você não me quis, e resolveu me esquecer.

ELA
E só no dia que eu te esquecer eu vou poder estudar os deuses. Por que eu nunca fui a Psiquê, e você não é Eros e por isso que te amei tanto: eu sempre fui só eu mesmo, e você foi sempre você.

ELE
E por mais que pareça estranho, eu deixarei aqui todas as minhas roupas que me lembram você - e até aquelas que me lembram eu porque eu tenho que deixar aqui um pedaço de mim, e até EU me lembra você.

ELA
E nesse dia sem sol, sem chuva, depois que anoitecer, eu vou ficar horas olhando pra lua, porque ela não me lembra mais você.

ELE
Eu deixo aqui, nessa peça que eu fiz pra te esquecer outras coisas que os outros não poderão ver: o gosto da sua boca, sua nuca, seu colo, suas mãos e as minhas mãos em você.

ELA
E o sol batendo oblíquo no quadro do klimt, e o por-do-sol por entre os prédios, os astros todos, até o universo eu vou poder rever, porque não vão ser só um pretexto pra pensar em você, no dia em que eu te esquecer.

ELE
Eu deixo aqui também umas coisas suas: o seu jeito de olhar primeiro pra baixo antes de me olhar nos olhos. E meus olhos nos seus olhos e o vento que sobe no peito quando a gente se vê.

ELA
E se eu tenho que escolher um dia, que seja hoje. Por que quanto mais tempo eu demorar, mais eu vou amar você.

ELA
E pra conseguir fazer isso, essa é a peça que eu fiz pra te esquecer.

ELE
(junto com ela)
E pra conseguir fazer isso, essa é a peça que eu fiz pra te esquecer.

fim.