porque já não consigo mais
a poesia é urgente
porque acabou-se a coca cola
por que as pessoas me são estranhas
porque o amor se foi
faz-se urgente que eu escreva
porque já não creio mais
ou porque a crença me cegou
porque o dia nunca mais irá raiar sobre nós
ou o sol está por horas a pino
para que a lua não passe desapercebida
para que o sol não nasça por acaso
para que não amemos em vão
para que não partas meu coração
para que nunca partas
ou para que ardamos de amor
e nunca morramos
porque a revolução não virá a galope
e estamos cansados demais
para que saiamos dessa com sorte
ou para que nunca nos deixemos
para que a paz reine
mas não perante covardia
para que saibas o quanto te amei
ou para que nunca saibas
para que abafemos nossas vozes parcas
ou para que engrossemos o coro do amor
para que haja a felicidade
para louvarmos nossos bons homens mortos
e para que os vivos também sejam louvados
para redimirmos as mulheres
ou para que esqueçamos nossos ódios
porque é necessário e perene
ou por que é belo, fugaz e inútil
a poesia se faz urgente
e é necessário que eu cante

porque não televisionamos a iluminação de buda
e porque não sabemos se jesus tinha barba
porque poderemos explodir de dor
ou afundarmos nossas cabeças na morte
para que nunca nos afundemos
e para que possamos ir a fundo
para que o capitalismo acabe
e para que eu possa ter um ipad
um nike um puma uma mercedes
mas acima de tudo amor
para que todos possam exercer seus deveres
e usufruir de seus direitos e prazeres
para que iluminemos com calma
para que a felicidade reine
mas não em detrimento da ordem
para apenas ser incrível
e passível e possível
e para que nossa história sobreviva
e seja sempre rediviva

é necessário que eu escreva
e que eu cante,
que eu proteja a arte na minha vida
ainda que não tenha mais voz
nem paciência nem tempo
nem ânimo
nem porque
eu cantarei nos pântanos
nos plátanos, nos prados
e nas padarias
nos metros nas gaiolas
e ainda que eu morra por cantar
na passagem
ainda farei poesia.

Era dia e fazia frio.
Eu olhei pela janela e lá vinha ela
em sua motocicleta magia
e o passado não existia:
não haveria os pintassilgos mortos
jazendo no espaldar
ou ainda o passado existia
e era de glória:
meu irmãos eram sãos
minha carreira brilhante
meus pais eram eternamente jovens
e minha avó nunca morreria

eu pegava na sua mão como um ato sagrado
sua mão era fenda-cálice de ouro
suas costas pétalas rubras
sua boca de bom amor
transbordante e perene, construtor
voávamos não em pégasus inventados,
mas em motocas mágicas
e deixávamos rastros de calor nos azuis celestes
era azul também sua turbina
era solar a vida que se impunha
como complexa e vivível
como a única possível
por ser o certo apenas certo
e certamente por perto
nosso amor construído em concreto
a vida na cura na arte
no amor nas palavras corridas
escorridas e repintadas pelas paredes gastas do tempo
os dias não escoavam em melancolias
mas em pequenos frêmitos de felicidade
era sorver a calmaria dos ventos
era deixar-se passar sem doer
aplaudir o caos das mentes
e saber que finalmente venceríamos

mas eu ainda olhava pela janela
e ela ainda chegava em sua motoca devaneio
e o futuro se aproximava como um sonho bom
era uma lua no céu outonal,
era brilhante com uma aura-penugem
que a cobria com sua fuligem prateada
o dia o céu o sol brilhava
oblíquo, longínquo, alegre
nada mais temeríamos
nem os tais pintassilgos jazidos no espaldar
o amor não seria um ringue
e eu e ela não estaríamos a lutar
mas trançaríamos pernas e braços
numa dança lenta de se deixar
seus olhos me escavariam
suas mãos precisas me achariam
sempre que procurassem
e sempre me procurariam

mas eu ainda a esperava
montada em sua motocicleta lunar
a noite caia solene
e somente a lua se mantinha
intacta, forte, serena
era leve a brisa e constante
eu a olhava por um instante
e de mim ela não corria
cortante vento soprava
nada eu pedia ou dava
nós apenas existíamos
eu a olha-la da janela
ela pilotando a motocicleta
partiríamos numa caravela
lindas, sorridentes
prenhes de futuro amor e riso
como num sonho navegável
por ser preciso, infalível
e fazíamos isso só por que era impossível

minha musa multiplicada em estrelas
passei uma vida a procurá-la
agora passarei outra a tê-la.
porque o conteúdo seria denso
(caso eu resolvesse falar)
me calo
como,
não falo,
formulo na formalidade.
sintética, precária:
limpando a imensa fenda
da perda da batalha.

se fugiste do trono-coral
do meu mundo subaquático
desmuso-te, ex-musa
expulso-te do imaginário
se não aguentaste golfinhos
e sereias, profundidades poéticas
o lirismo incomedido
o amor sem hora certa
o arrebatar do verbo
a figura não-concreta
por que hei eu de gastar a verve
com quem não ama a poeta?

contenta-te com minha presença
pacata, emudecida, serena
perene e transmutadora
(que eu me virei sozinha
quando viraste as costas
e bem atriz (minha lilith encantadora),
me fiz
de
engolidora de sapos
administradora de micos,
enforcadora de vacas,
alisadora de gatos,
passando por buracos
vexames, exposição
que de nada valeram além
de uma bela lição)

então
monta no cavalo branco do teu príncipe encantado
e aguente ser só figurante do meu poético reinado.

(não que sofras: palavra é galgada do amor
e deste tipo não sei se cultivas, se semeias com ardor
ou se és aprendiz de rasuras, dessas de dar enjoo a divas
dessas que parecem tudo, mas que são coisa à toa:
estão na beira e não aprofundam,
no barco se perdem na proa)

não era melhor me calar?
fecho a boca com café
e volto pro meu lugar.

o coração bipartido afogado em marés estranhas
coração não compreende
infeliz mente
porque coração não tem mente,
coração não mente
só está
duas vezes ido
despreparado
desnutrido
duas vezes parido
repartido
reparado
retorcido

coração debate
se debate
sede bate
cede, bate
bate um dois três
pedindo auxílio:
numa garrafa irreal inscreve aflito
um socorro sofrido
em líquido vermelho vivo

lá de dentro do armário submarítimo
em oceanos siderais distantes
avista o olhar cósmico intrigante pungente, constante
(as enormes janelas de soslaio fingindo que se foram
mas ficaram e percorram o caminho dolorido da perda.
Mudaram por dentro, as janelas.
Cresceram? Transformaram-se)

na fresta perdida do coração rebelado
o coração já não sabe nada
e coração não sabe nadar
pra sair desse azul fechado
lúgubre lugar em que foi enfiado
enfiou-se por que não fia em si

ela, janela intrincada com paciência recolhe os cacos
do coração quebrado
com as precisas mãos de água
limpa lava, escolhe cada palavra.

tem paciência de janela e abre as comportas.