Era dia e fazia frio.
Eu olhei pela janela e lá vinha ela
em sua motocicleta magia
e o passado não existia:
não haveria os pintassilgos mortos
jazendo no espaldar
ou ainda o passado existia
e era de glória:
meu irmãos eram sãos
minha carreira brilhante
meus pais eram eternamente jovens
e minha avó nunca morreria

eu pegava na sua mão como um ato sagrado
sua mão era fenda-cálice de ouro
suas costas pétalas rubras
sua boca de bom amor
transbordante e perene, construtor
voávamos não em pégasus inventados,
mas em motocas mágicas
e deixávamos rastros de calor nos azuis celestes
era azul também sua turbina
era solar a vida que se impunha
como complexa e vivível
como a única possível
por ser o certo apenas certo
e certamente por perto
nosso amor construído em concreto
a vida na cura na arte
no amor nas palavras corridas
escorridas e repintadas pelas paredes gastas do tempo
os dias não escoavam em melancolias
mas em pequenos frêmitos de felicidade
era sorver a calmaria dos ventos
era deixar-se passar sem doer
aplaudir o caos das mentes
e saber que finalmente venceríamos

mas eu ainda olhava pela janela
e ela ainda chegava em sua motoca devaneio
e o futuro se aproximava como um sonho bom
era uma lua no céu outonal,
era brilhante com uma aura-penugem
que a cobria com sua fuligem prateada
o dia o céu o sol brilhava
oblíquo, longínquo, alegre
nada mais temeríamos
nem os tais pintassilgos jazidos no espaldar
o amor não seria um ringue
e eu e ela não estaríamos a lutar
mas trançaríamos pernas e braços
numa dança lenta de se deixar
seus olhos me escavariam
suas mãos precisas me achariam
sempre que procurassem
e sempre me procurariam

mas eu ainda a esperava
montada em sua motocicleta lunar
a noite caia solene
e somente a lua se mantinha
intacta, forte, serena
era leve a brisa e constante
eu a olhava por um instante
e de mim ela não corria
cortante vento soprava
nada eu pedia ou dava
nós apenas existíamos
eu a olha-la da janela
ela pilotando a motocicleta
partiríamos numa caravela
lindas, sorridentes
prenhes de futuro amor e riso
como num sonho navegável
por ser preciso, infalível
e fazíamos isso só por que era impossível

minha musa multiplicada em estrelas
passei uma vida a procurá-la
agora passarei outra a tê-la.

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