Nascimentos das garras

Eram grande olhos, muito azuis, que olhavam muito através de mim. Talvez uma porta por trás da cabeça. Eu ainda achava que eram prá mim os olhares doces dos grandes olhos muito muito azuis.
Atrás deles, uma janela, onde mostrava uma noite muito preta, sem luz, sem avião e sem lua. Talvez existiu um momento que fez um sentido e gravou na minha retina a cena. Amanhecia.
Era o quinto ou sexto copo de vodca. Um cheiro forte de noite etílica. Mas livros, muitos livros, contos, e poesia embriaavam mais do que o álcool.
Sugava meu sangue de tempos em tempos, e com goles de vodca e C. F. Abreu. Eu, Bloody Mary, estava ali por gosto, mas poderia sair, caso quisesse. Bastava abrir a porta atrás da minha cabeça, erguer o corpo e sair na noite muito sem lua sem olhar prá trás. Mas eram tão azuis os olhos e tão doce a poesia, e era só o meu sangue que eu dava em troca. E ainda não havia me tornado o que sou: serpente-esfinge-de-olhos-pintados. Não era portanto essa eu de agora que havia se apaixonado pelos olhos.
Ela, meio vampira, meio sereia de grito poderoso, me prendia com o olhar e o canto. Dizem que os vampiros derretem na luz do sol. Mas não foi assim não.
Eu vi, na janela atrás dos olhos, a noite virando dia, forçando a beira do céu prá romper. Vi os olhos ficarem da cor do azul vespertino, um azul específico. Ou foi o dia que tirou o azul dos olhos vampirescos. Eu olhava fixamente, tentando apreender o encanto. O dia alto no céu azul claro, sem nuvens.
Não tinha força para levantar, mas o que me prendia não estava mais lá. Como que por magia, ou pela falta dela o meu corpo ergueu-se, saiu pela porta e ganhou o dia.
Assobiava de felicidade. Dormi três dias. O corpo refez o sangue.
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Quando acordei, reparei numas unhas de gato-leão nas mãos. Essas mesma que carrego nas minhas duras patas.
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Inda encontrei, anos depois, a sereia-vampira, mas a magia havia partido. Talvez por que fosse dia, talvez por que já fosse eu esfigeorobórica, mais preocupada com meus encantos.

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