Fui dar uma volta a toa
me perdi numa esquina
virei na paralela
e fui parar de frente ao coração dela.
Entrei, não sem antes respirar fundo
(entrar no coração do outro é quase que entrar em outro mundo)

Achei que seu coração seria por dentro coberto de espelhos
de tamanhos diferentes e por todos os lados
mas espelhos
como o que ela salpica nas paredes das casas que mora
como os que ela transforma os vidros, as vitrines
os olhares dos meninos e meninas que suspiram
como o seu mundo espelhado distorcendo os sentidos.

Mas não.
seu coração era repleto de colagens de fotos
fotos de divas, de estranhos, de gente sensualmente despida.
Mas na maioria, fotos dela. Tantas caras dela olhando pra mim
me assustaram e me tranquilizaram, me fizeram chorar
(desses sentimentos dúbios: violência apaziguadora)
depois pensei que era esse o certo:
fossem espelhos eu me veria lá dentro.
Minha cara espepalhada por todos os cantos.

Muitos ambientes compunham seu vasto coração
algumas decorações ousadas
outras rabiscadas a carvão
outras escorridas com lágrimas
outras escondidas no porão.
(No porão não subo, não entro não
não sou tão intrépida, não sei subir
e mesmo aberto o alçapão
e tenho medo de me perder por lá)

Num canto todo pink-fetiche
bigodes colados, chicotes, altares profanados
alguns baseados fumados
cigarro, bebida, cheiro forte de channel no. 5
corações tatuados sangrentos abertos
doloridos, bolorentos: quase estive por lá
mas não entrei numas.

Espalhados cá e lá
fotos de boys-magia
e algumas macias meninas, mas sobretudo
meninos, homens, senhores, rapazes, moçoilos
lindos como um bom dia depois de uma noite consumada
não tinham espaços fixos, mal fixavam o olhar, mal eram vistos
e quando eram se exibiam: troféus de escolhidos
por mais que saibam do seu breve transitar.
Esses foram menos doloridos de contemplar

(Há espaços planejados
(esses são mais duros de ver)
futuros plasmados, já em planta e não edificados
mas que rezo pra saber,
e sei que saberei quando acontecer.)

Mas

Uma confortável poltrona, num espaço arejado
um sol batendo de leve, plantinhas floridas
as paredes claras, poesias espalhadas
alguma dor, muita conversa, nenhum apego
tive um ataque de riso ao entrar e ver
um pequeno palco microfonado
numa enorme cama desfeita
em lençóis de senhora
atraente, ainda quente,
misteriosa, dadivosa e conhecida
de noites viradas em descobertas
as cobertas espalhadas,
canetas pelo chão, gatos dormitando
almofadinhas, edredon, livros
e uma cafeteira eterna:
fui atraída pra lá e pensei que era esse mesmo o meu lugar
amplamente composto, confortável como um sonho antigo
aconchegante como ombros-travesseiros
amedrontador como pertencer a alguém
perfeito como só em corações abertos a visitação.

2 comentários:

Dilma disse...

bonito, dá vontade sentir os odores, sinestesia chocante.

JujuCunha disse...

me vi em cada lugar desse coração... lindo!